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A Areté dos Heróis na Mitologia Grega e Sua Relação com os Deuses


Júlia de Alencar, foto

por Júlia de Alencar

É uma romântica cor-de-rosa. Apaixonada

por livros, emoções e histórias a serem contadas,

escreve, também, para contar.







Os heróis emergem como figuras centrais na mitologia grega, desafiando o destino e buscando a sua divindade. Eles são muito mais do que protagonistas de contos épicos; são agentes cuja função é aproximar o povo heleno (povo natural da Grécia Antiga) dos Deuses, guiando-os através de seus exemplos, assim como os próprios Deuses. Assim, abordarei aqui suas ações e os paralelos tão notáveis revelados entre heróis e Deuses, destacando a importância do autoconhecimento e da areté para a ascendência do homem ao patamar de divindade.



Paralelismo entre Heróis e Deuses:


Os feitos dos heróis não são simples narrativas heroicas, mas um espelho dos deuses no Olimpo. Isso é fácil de exemplificar com as figuras de Odisseu e Héracles. Odisseu é conhecido nas obras homéricas por utilizar de sua inteligência como um artifício para favorecê-lo em todos os aspectos de sua vida. A partir dela, conquistou a bênção para casar-se com Penélope, liderou suas tropas com maestria durante a guerra de Tróia, terminando a guerra com todos os seus 600 homens vivos e sendo responsável pela estratégia que acabou com qualquer chance do exército troiano reverter a situação e sair vitorioso: o tão famoso Cavalo de Tróia. Sua inteligência lhe garantiu o favoritismo de Atena; sua habilidade com as palavras garantiu o favor de Hermes; e são esses favores que o impulsionaram ao longo de sua história.


Um caso parecido é o de Héracles, que por sua coragem e força conquistou o interesse de Atena e Zeus como patronos de suas provações. Diferentemente de Odisseu, o apoio dos deuses a Héracles foi bem mais restrito, indireto, exatamente pelo veto de Zeus à interferência dos deuses, seja ela maléfica ou benéfica.


Como visto em figuras como Odisseu e Héracles, a virtude dos heróis não se resume apenas à força bruta, mas à uma combinação de inteligência, coragem e autorreflexão.


Os deuses, por sua vez, frequentemente orientam os heróis por provações, mas personificam virtudes que vão além do mundo terreno. Essa relação revela a influência divina nas vidas dos heróis, destacando a areté como virtude e honra, servindo como guia moral em suas jornadas.



Areté e a Divinização:


Além da abordagem aristotélica da areté, relacionada à excelência e à virtude, na espiritualidade helênica, especialmente no contexto da religião politeísta grega, a areté assume um matiz adicional, intrinsecamente ligado à virtude, à honra e ao dever. Neste contexto, a areté transcende as esferas éticas, intelectuais e físicas para abranger a dimensão espiritual da vida.


Na visão helênica, a areté espiritual manifesta-se através da prática de virtudes éticas e morais, honrando os deuses, a comunidade e, fundamentalmente, cumprindo os deveres e responsabilidades individuais. Este conceito está profundamente enraizado na consciência de fazer a coisa certa, guiada pelos princípios do respeito, da justiça e da integridade. A areté espiritual é, assim, uma busca pela harmonia não apenas consigo mesmo, mas também com o mundo divino e humano ao seu redor.


É essencial destacar que na religião politeísta grega não existe uma concepção estrita de pecado como encontramos em algumas tradições religiosas monoteístas. Em vez disso, a noção de areté espiritual está vinculada ao respeito pelas moiras, as leis do destino a que todos estão sujeitos. Aquilo que pode ser interpretado como um erro ou pecado pode não constituir necessariamente uma violação, desde que esteja em conformidade com as leis do destino.


A areté espiritual, portanto, torna-se um dos principais valores no corpo ético dos propósitos helênicos. É uma chamada à consciência do dever, à prática da virtude e à busca pela harmonia tanto na esfera humana quanto na esfera divina. Ao viver em alinhamento com a areté espiritual, os indivíduos helênicos buscam não apenas a excelência moral, mas também a conexão mais profunda com o sagrado e a realização de seu propósito dentro da complexa teia do destino.


"No entanto, deves agir como se o teu esforço fosse tudo e, ao mesmo tempo, confiar no sucesso, como se fosse inevitável." - Ilíada de Homero

Aristóteles introduziu o conceito de areté, que denota excelência e virtude. Os heróis, ao buscar areté, buscam não apenas aperfeiçoar habilidades físicas, mas também cultivar virtudes morais e intelectuais. Essa busca pela excelência é intrinsecamente ligada à divinização, pois, ao alcançar a areté, os heróis aproximam-se dos ideais divinos.



Alinhamento de Ideais entre Deuses e Heróis:


No detalhado panorama da mitologia grega, a relação entre deuses e heróis vai além de uma mera interação narrativa; é um jogo de alinhamento de ideais que molda o destino desses personagens. A jornada heroica, permeada por escolhas significativas, atua como o fiel da balança entre a mortalidade e a divindade. Nesse sentido, a areté, como um conceito fundamental, emerge como a força propulsora que aproxima os mortais da divindade, um caminho pavimentado por escolhas sábias e a incorporação dos arquétipos divinos.


Ao contrário de algumas mitologias que retratam uma separação nítida entre a humanidade e o divino, a mitologia grega tece uma narrativa interconectada. Aqui, os deuses não estão distantes e inacessíveis; eles se entrelaçam nas vidas dos heróis, guiando, testando e, por vezes, desafiando. Essa proximidade mitológica ressalta a possibilidade de os mortais, mediante a areté, atingir não apenas a benevolência divina, mas até mesmo a divindade.


O alinhamento entre heróis e deuses emerge como um fio condutor, tecendo a trama das escolhas cruciais ao longo da jornada heroica. Se o herói opta por se conformar aos ideais divinos, abraçando a sabedoria, a coragem e a justiça exemplificadas pelos deuses, abre-se a perspectiva de uma ascensão à divindade. A divindade não é apenas um destino reservado aos deuses; é uma meta tangível para aqueles que, através da areté, transcendem a condição mortal.


"O que aprendi por sofrer e por perder, essa lição me foi útil." - Odisséia de Homero


Hera como Arquiteta da Divindade:


Para melhor ilustrar a relevância do alinhamento entre heróis e deuses, usarei a deusa Hera, que já foi explorada individualmente nesta coluna, como exemplo.



Afinal, a relação entre Hera e Héracles vai além da aparente rivalidade, revelando um papel crucial da deusa na mitologia grega, especialmente ao preparar semideuses e heróis para a grandiosidade do Olimpo. Hera, muitas vezes simplificada como uma deusa ciumenta, transcende esse estereótipo, tornando-se uma ferramenta vital para a ascensão dos heróis, como evidenciado no mito de Héracles.


Contrariando a visão comum de Hera como uma vilã cega pela inveja, ela emerge como uma força impulsionadora na vida de Héracles. Ao impor as "Doze Tarefas de Héracles," Hera não apenas apresenta desafios físicos, mas também guia o herói em uma jornada de autoconhecimento. Estas tarefas não são apenas obstáculos a serem superados, mas uma mentoria desafiadora que forja a resiliência de Héracles e o orienta para alcançar seu potencial máximo.


A imposição dessas tarefas por Hera desempenha um papel essencial na formação de Héracles, transcendendo as limitações humanas e preparando-o para a grandeza divina. Assim, Hera emerge não como uma antagonista ciumenta, mas como uma figura arquetípica que, através de suas provações, contribui significativamente para elevar os heróis ao Olimpo, transformando-os em seres dignos de divindade.


Ao abençoar Jasão, por exemplo, Hera revela sua faceta benevolente e colaborativa, alinhando-se a empreendimentos nobres. No entanto, a traição posterior de Jasão ao prejudicar Medeia coloca à prova essa benevolência. A deusa, inicialmente favorável a Jasão, retira sua proteção diante da clara traição moral, destacando sua justiça intransigente.


Esse ato não é resultado de impulsividade, mas uma demonstração da integridade e lealdade de Hera a princípios morais mais elevados. Ele ilustra que, para Hera, a lealdade e a moralidade têm um peso significativo, superando qualquer favorecimento inicial a um mortal.


Heróis Trágicos: Destinos Amargos e Lições Divinas


Além dos heróis que ascenderam à divindade, a mitologia grega é pontuada por figuras trágicas cujos destinos foram marcados por desafios intransponíveis e castigos divinos. Sísifo, Belerofonte, Atalanta, Orfeu e Midas são exemplos notáveis de como a busca por grandeza nem sempre resulta em triunfo.



Sísifo, conhecido por sua astúcia, ousou enganar os deuses. Condenado por sua audácia, foi destinado ao Tártaro, onde eternamente empurra uma pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta. Seu castigo é um lembrete sombrio de que desafiar os deuses têm consequências eternas.


Belerofonte, montando o pégaso alado, aspirou a alcançar o Olimpo. Sua ambição, no entanto, não foi temperada por provações heróicas. Condenado à queda livre, Belerofonte é um lembrete de que a glória sem mérito é efêmera. Sua queda serve como uma advertência contra a arrogância diante dos deuses.


Atalanta, apesar de sua destreza e habilidade, foi advertida por uma profecia para não se casar. Ignorando o aviso, seu casamento resultou em uma série de eventos desastrosos, culminando na transformação dela e de seu marido em leões. A tragédia de Atalanta destaca a inevitabilidade das profecias e as consequências da desobediência.


Orfeu, músico e poeta excepcional, desceu ao submundo em busca de sua amada Eurídice. Sua música comoveu os corações de Hades e Perséfone, mas sua imprudência ao olhar para trás selou a perda irreparável. Orfeu personifica a fragilidade humana diante das condições impostas pelos deuses, mesmo quando motivado pelo amor.


Midas, tocado pela ganância, desejou o toque de ouro. A maldição transformou-se em lição quando perdeu a capacidade de alimentar-se e perdeu sua filha. No entanto, ao buscar a sabedoria de Dionísio, Midas foi agraciado com a redenção. Sua história destaca que a busca pelo materialismo pode levar a perdas irreparáveis, mas também oferece a oportunidade de crescimento pessoal e benevolência.


Esses contos trágicos convergem para uma conclusão inescapável: a busca desenfreada pela grandiosidade, quando não alinhada com princípios e méritos, pode levar a destinos irreversíveis. No entanto, a redenção e o aprendizado emergem como possíveis caminhos, destacando que, mesmo diante das punições divinas, há espaço para a transformação e a sabedoria. Essas histórias sombrias ressoam como lembranças atemporais das complexidades inerentes à relação entre os mortais e os deuses na mitologia grega.



Conclusão:


Com todos esses exemplos, fica claro que a relação entre heróis e deuses, longe de ser um mero enredo, é sobretudo um testemunho de uma conexão entre o terreno e o celestial. A areté, nessa perspectiva, não se restringe à excelência física ou intelectual, mas assume uma dimensão espiritual, alinhada à virtude, à honra e ao dever. A grandiosidade buscada pelos heróis não é apenas uma ascensão física, mas uma jornada espiritual que os aproxima da divindade.


Hera, nesse sentido, como arquiteta de divindades, transcende o estigma de uma deusa ciumenta, tornando-se uma força impulsionadora que forja heróis através de desafios e verdadeiras mentorias. Sua benevolência e justiça intransigente ressoam como lições profundas sobre lealdade, moralidade e o papel essencial desses valores na ascensão aos planos divinos.


Os heróis trágicos, marcados por Sísifo, Belerofonte, Atalanta, Orfeu e Midas, revelam que a grandiosidade desprovida de mérito e princípios pode resultar em destinos amargos. No entanto, suas histórias também sussurram sobre a redenção e a capacidade de aprender, mesmo diante das punições divinas. A busca desenfreada pela grandiosidade, quando desacompanhada de sabedoria, pode ser efêmera, mas também oferece espaço para crescimento, transformação e benevolência.


Assim, a mitologia grega se ergue como um espelho intemporal, refletindo não apenas os feitos épicos de heróis, mas uma narrativa que transcende as eras. Ela nos lembra que a jornada em busca da divindade é, em última análise, uma busca pela verdade, pela compreensão mais profunda de nós mesmos e do cosmos que habitamos. Nos mitos, encontramos não apenas contos antigos, mas lições eternas sobre o significado da excelência, da virtude e da conexão com algo maior do que nós mesmos.



Referências:

“Diversity in Divinity: Gods and Heroes”

“Mito e religião na Grécia antiga” por Jean-Pierre Vernant

“O conceito de areté em Aristóteles” por Dagmar Manieri

“Even the Greeks had Daddy issues”


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