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Foto do escritorVolnei Freitas

A Balada do Black Tom: fantasia urbana que revela o horror cósmico no coração da humanidade

Volnei










O que ocorre quando uma obra de arte transcende seu tempo, tornando-se, simultaneamente, um espelho de seus preconceitos e um espaço para libertação? Victor LaValle sublima o indescritível e nos brinda com o poderoso conto A Balada do Black Tom. Uma resposta à altura que reimagina O Horror em Red Hook, de H.P. Lovecraft (1890 - 1937), e o transforma em um manifesto contra o racismo e demais comportamentos abjetos da humanidade. Este é um exemplo de singular qualidade sobre como a fantasia remodela o horror cósmico e, longe de ser apenas um veículo de escapismo, transforma-se em uma ferramenta reveladora das cicatrizes mais profundas da nossa sociedade.


No coração de A Balada do Black Tom está Tommy Tester, um músico negro, golpista inofensivo, que navega pelas águas traiçoeiras da Nova York dos anos 1920, onde o racismo estrutural e a opressão racial são tão palpáveis quanto os horrores cósmicos que espreitam às portas da loucura. A genialidade de LaValle reside em sua capacidade de se reapropriar da narrativa lovecraftiana nesse contexto e subverter a temática original, imbuindo-a de sensibilidade social e crítica. 


Tommy Tester não é apenas vítima das forças sobrenaturais que o cercam, como também do racismo enraizado em seu cotidiano e um agente de sua vontade. Exatamente nesse ponto a arte de LaValle revela sua força, ao utilizar o horror cósmico como uma metáfora para os horrores reais e presentes no próprio ser humano, especialmente aqueles ligados ao preconceito racial e seus efeitos, até descobrir o ponto de ruptura:


“Carrego um inferno dentro de mim. E quando descobri que ninguém tinha compaixão por mim, quis arrancar árvores, espalhar o caos e a destruição ao meu redor e depois me sentar e desfrutar da ruína”, “Então, você é um monstro”, comentou Malone, “Fizeram de mim um monstro”. (pg. 122)

Lovecraft, o pilar do horror cósmico, infundiu em suas obras uma visão aterradora do desconhecido, com forças alienígenas e divindades incompreensíveis que suprimem a fragilidade humana. No entanto, é simplesmente impossível ignorar os preconceitos raciais que permeiam sua obra, especialmente em O Horror em Red Hook


Ao revisitar esse conto, LaValle não apenas expõe tais elementos. Também os ressignifica, transcende as limitações de Lovecraft. Sob sua pena, o horror não se restringe às criaturas de outras dimensões; emerge do preconceito enraizado, que desumaniza e destrói aqueles que são diferentes ou que podem comprometer o status quo. Ao colocar um homem negro como protagonista e, principalmente, dar vida ao seu cotidiano e relações, às raízes históricas da opressão, o autor muda o foco da narrativa, permitindo que o leitor experimente duplamente o horror, tanto cósmico quanto humano, tornando-o mais universal e inclusivo.


Neste ponto, a arte torna-se um veículo de libertação. A fantasia, com suas narrativas distantes da realidade imediata, permite criar uma nova lente para se ver o mundo. A fantasia revela verdades sombrias que o cotidiano tende a esconder. A arte, assim, cumpre seu papel duplo de refletir e desafiar as normas sociais.


Esse processo artístico de sublimar o horror humano e universalizar a narrativa sem perder sua força dialoga com o “Belo Reino”, ideia explorada na coluna anterior como a capacidade da fantasia de transcender o escapismo e se tornar um espaço de revelação. Em A Balada do Black Tom, o “Belo Reino” da fantasia tolkiana oferece uma espécie de redenção, uma fuga momentânea que nos permite explorar o que há pútrido no coração da humanidade, ao passo que nos oferece um vislumbre de esperança.


Ao subverter uma narrativa enraizada no medo do outro e na manutenção brutal do status quo, LaValle transforma a fantasia em um território de triunfo das forças da diversidade sobre os preconceitos do passado, incorporando as adversidades da vida humana ao núcleo da história. A melhor representação desse processo é o tratamento dado ao detetive Malone, que de protagonista caucasiano e curioso torna-se um secundário contratado e pragmático, apenas “homem de seu tempo”, cujos efeitos de seus atos alimentam o último passo ao abismo de Tommy, agora Black Tom, e, como isso, endereçam a ruína da qual o detetive será vitalícia testemunha. Cuja cegueira (ocultista, social) fora desnudada. 


Outro detalhe: ao longo da evolução desta fantasia urbana, o horror desenvolve-se, cresce, faz-se presente por alusões. Isso alimenta nossa curiosidade. Vemos uma ampliação dos horizontes do gênero, o horror perante o desconhecido absoluto inclui o familiar. O medo cósmico é, em última análise, um reflexo dos horrores criados pela humanidade. Assim, A Balada do Black Tom torna-se uma obra seminal e reveladora, explicitando somente ao fim o cenário que suas alusões alimentam.


“Os mares vão se erguer e nossas cidades serão engolidas pelos oceanos. O ar ficará tão quente que não conseguiremos respirar. O mundo será refeito por Ele e por Sua espécie. Aquele homem branco tinha medo da indiferença; bem, agora ele vai descobrir como é senti-la.” (pg. 137)

Através da arte, LaValle não só reinterpreta Lovecraft, eleva o horror cósmico a um novo patamar. Por meio da fantasia urbana, traz à tona as lutas sociais e o impacto do racismo como um espelho da retorcida realidade, onde os horrores do passado e do presente são confrontados e superados. Assim, a obra não apenas preserva o fascínio pelo horror cósmico, como também abre novos caminhos para a fantasia como uma força de revelação e de mudança.


E, aproveitando o ensejo, que tal acessar 14 contos, vivenciando diferentes facetas deste gênero, vendo-o pela lente de autores nacionais? A Editora Especular está lançando sua primeira Antologia de Horror Cósmico, dos quais orgulhosamente escrevi um com aterradora paixão! Bora ler?


Referência: 

LAVALLE, Victor. A Balada do Black Tom. Trad. Petê Rissati, Giovana Bomentre. São Paulo: Morro Branco, 2018.

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2 comentários


Bianca Lais
Bianca Lais
29 de nov.

Excelente texto, Volnei! Acho incrível a capacidade que o horror tem de criar metáforas e alegorias sobre temas tão espinhosos. Impressionante que os preconceitos que construíram o horror cósmico de Lovecraft hoje se voltam contra essa essência para refletir o outro lado, transmitindo mensagens e ressignificando abordagens, somando para a próprio gênero. A arte é realmente transformadora.

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
28 de out.

Baita indicação, Volnei! Vou atrás com certeza. O racismo de Lovecraft não pode ser interpretado apenas como as ideias de um homem de seu tempo, e subverter sua obra mais racista é um recurso muito interessante. Fizeram uma coisa semelhante na série de Entrevista com o vampiro, onde Louis é um homem negro no início do século XX, e não um proprietário de plantação escravagista como no livro, o que eu achei que adicionou muito à narrativa. A mudança de ponto de vista é sempre bem-vinda para repaginar gêneros literários em movimento dialético :)

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