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A Ficção Científica como Lente para (re)Interpretar a Arte Colonial Brasileira: Problematizando os Ideais de Colonização Através da Arte

Gabriel Mello, escritor e colunista da Revista Especular







Resumo

O ensaio aborda a Arte Colonial Brasileira, explorando suas representações de colonização, conquista e propaganda, enquanto destaca as histórias de violência e resistência frequentemente ocultas. Utilizando a ficção científica como lente interpretativa, a pesquisa propõe uma abordagem interdisciplinar para enriquecer a compreensão da arte colonial, desmantelar estereótipos arraigados e lançar luz sobre perspectivas subalternas. O estudo examina obras de arte colonial em conjunto com obras de ficção científica, visando contribuir para uma revisão crítica da história colonial brasileira.


Palavras-chave: Arte Colonial Brasileira, ficção científica, colonização.


Abstract

The essay explores Brazilian Colonial Art, examining its representations of colonization, conquest, and propaganda, while bringing to light hidden stories of violence and resistance. Using science fiction as an interpretative lens, the research proposes an interdisciplinary approach to enrich the understanding of colonial art, dismantle ingrained stereotypes, and shed light on subaltern perspectives. The study analyzes colonial artworks alongside science fiction works, aiming to contribute to a critical review of Brazilian colonial history.


Keywords: Brazilian Colonial Art, science fiction, colonization.



Introdução


A história da colonização do Brasil é um relato complexo, que permeia camadas completamente profundas, mas que construiu narrativas e representações artísticas que refletem as perspectivas dos colonizadores e dos povos colonizados até hoje. A Arte Colonial Brasileira, em particular, desempenhou um papel crucial na construção e promoção dos ideais de colonização durante os séculos XVI ao XVIII. No entanto, sob a superfície das pinturas, esculturas, papéis e objetos de arte, encontram-se histórias de conquista, violência e resistência que muitas vezes foram obscurecidas. Este artigo propõe uma abordagem interdisciplinar para analisar a Arte Colonial Brasileira, usando a ficção científica como uma nítida lente interpretativa, muito mais do que especulativa.


Nesse sentido, a ficção científica, como um gênero literário e cinematográfico que explora mundos alternativos e realidades paralelas, criando uma rede de especulação, oferece uma perspectiva imaginativa, mas que também nos permite questionar e problematizar os ideais de colonização, assim como a normatização de uma ação colonizadora, que fundou a Arte Colonial através de apagamentos, violências e múltiplos delitos à integridade humana. Sobretudo, ao aplicar os conceitos da ficção científica a essas obras de arte, surge a sensação de que podemos forjar e fomentar novas dimensões de significados, assim como desconstruir estereótipos arraigados e lançar luz sobre as perspectivas subalternas que muitas vezes foram negligenciadas.


Neste contexto, exploraremos as representações de colonizadores e colonizados na arte colonial, juntamente às imagens de conquista e submissão e à propaganda colonial que tais obras transmitiam. Ao mesmo tempo, busca-se considerar como a ficção científica pode nos ajudar a tecer uma conflituosa arte futura, que, muitas vezes, insiste em retomar e romantizar as violências passadas.


Vale dizer que esse estudo também apresentará estudos de caso, analisando pinturas, esculturas e objetos de Arte Colonial em conjunto com obras de ficção científica, a fim de demonstrar como essa abordagem pode enriquecer nossa compreensão da Arte Colonial Brasileira e desafiar narrativas dominantes. Através deste diálogo imaginativo entre a arte do passado e a imaginação do futuro, aspira-se contribuir para uma revisão crítica da história colonial brasileira e destacar o potencial da ficção científica como uma ferramenta analítica valiosa.



Breve contexto da Arte Colonial Brasileira e a importância de sua pesquisa


A Arte Colonial Brasileira, para além de uma rica produção artística visual que comete uma complexa experiência estética àqueles que a veem, vingou durante os séculos XVI ao XVIII e é um testemunho visual da complexa história da colonização do Brasil. Marcada pela fusão de influências europeias, indígenas e africanas, essa forma de arte desempenhou um papel incisivo na construção e promoção dos ideais de colonização que moldaram a história do país. No entanto, sob a superfície das pinturas, esculturas, papéis e objetos de arte produzidos nesse período, encontram-se histórias de conquista, violência e resistência que frequentemente são apagadas pela narrativa dominante.


Antecipadamente, a Arte Colonial Brasileira é um campo de estudo que tem sido, em grande parte, abordado de forma tradicional, muitas vezes ignorando as camadas mais profundas de significado, assim como silenciando diversas vozes em sua produção. Sobretudo, vale observar quais contribuições reais há no estudo da Arte Colonial Brasileira e, ainda, rever o seu estudo sob a lente formalista e tradicional.


Até que ponto os estudos acerca das modulações das rocailles ou das bases das perspectivas proporcionam um olhar ampliado sobre o mundo colonial português?  Qual o contato e a fratura entre os distintos espaços desse império? (FRONER, 2010). Vale pensar nos objetivos de pesquisa e no potencial que os registros da Arte Colonial têm através da sua natureza em demonstrar as complexidades sociais da época, seja por meio de sistemas de representação institucionalizados pelo processo de colonização, ou através dos sistemas advindos dos grupos que participavam de uma construção material e genuinamente ritualística.


Desta maneira, a necessidade do estudo, hoje, reside em abordar as representações de colonizadores e colonizados na Arte Colonial Brasileira. Sobretudo, buscar em outras linguagens, como a lógica literária especulativa e a Ficção Científica, maneiras de visualizar uma história negligenciada, interrompendo, finalmente, alguns brutais padrões. Isso porque a obras de arte do período colonial frequentemente retratam a conquista, a submissão e a propaganda colonial de maneira simplificada e religiosa, reforçando estereótipos violentamente arraigados. As imagens coloniais brasileiras retratam a realidade de um passado. No entanto, quando projetada para o futuro, a concepção de Colonização ainda se dá através da glória, do poder e da sacra conquista, tudo isso através de uma visão romantizada.


Enquanto o ardente Barroco mostra a potência de ideologia, brilhante através da talha dourada, por exemplo, o contexto vivido na colônia cada vez mais se precarizava para os dominados.

 


A Utilização da Ficção Científica como Ferramenta Analítica


O que muito parece espantar é a utilização da ficção científica para metodologias de ensino e pesquisa dentro das humanidades. No entanto, partindo do suposto que o gênero pode ser visto delimitando "fatos que se verificam em ambientes sociais não existentes na atualidade e que jamais existiram em épocas anteriores" (ASIMOV, 1984), é possível perceber que a ficção científica permeia muito mais do que as ciências exatas, e pouco se limita às especulações através das lentes estatísticas ou processuais.


Nesse sentido, a aplicação da ficção científica nas artes visuais revela uma interseção proveitosa entre a criatividade e o pensamento crítico, mas principalmente a partir da sua natureza como mecanismo motor de ressignificação da história canônica. Ao contrário do que é generalizado, a ficção científica não se restringe apenas às disciplinas tradicionalmente associadas a ela, como a física, a biologia ou a engenharia, mas atua como instrumento histórico, tendo em mente que o gênero literário tem na sua estrutura sua afiliação à história, uma ciência humana. Portanto, apropriar-se desta natureza para repensar olhares e angulações acerca da narrativa tradicional da História da Arte mostra-se extremamente proveitoso.


No entanto, para que se possa receber os benefícios da interdisciplinaridade, levando à pesquisa em Artes a ficção científica, é importante entender quais os vieses, os parâmetros e as abordagens trazidas dentro do gênero literário.


Nesse sentido, a ficção científica, por sua própria natureza especulativa, incorpora uma série de ideologias que moldam suas narrativas. A visão plenamente otimista de um futuro utópico, frequentemente associada à tecnologia e à exploração espacial, contrasta com abordagens distópicas, que exploram os perigos e as consequências negativas do avanço científico. Imediatamente, o próprio gênero coloca-nos em meio a uma dicotomia reflexiva, acerca da fundamentação do que seria o futuro, mas, sobretudo, do que foi o passado.


Da mesma maneira o gênero estabelece outros parâmetros, alguns mais flexíveis e que vão além das fronteiras temporais e da ideia de futuro útopico/distópico. Através de conceitos como ‘viagem no tempo’, ‘universos paralelos’ e ‘realidades alternativas’, a ficção científica questiona as impostas limitações da narrativa histórica. Assim, a utilização de objetos futuros, no entanto, coloca o leitor em contato com suas ideologias já firmadas acerca do passado e do presente, que, muitas vezes, são vistos como iguais no gênero literário.


Esses parâmetros, por sua vez, oferecem às Artes uma exploração de possibilidades, sobretudo para a fuga das restrições históricas tradicionalmente construídas.

 


Desconstrução de Ideais de Colonização e Normatização da Ação Colonizadora: Do Literário à Arte Colonial Brasileira


No contexto brasileiro, essa convergência de disciplinas aparenta construir uma nova narrativa, particularmente relevante na desconstrução de ideais relacionados à colonização e à normatização da ação colonizadora, destacando um recorde mais amplo, porém cuidadoso, da tapeçaria histórica do Brasil e do seu encontro com as narrativas da ficção científica.


A ficção científica, como observado, transcende algumas fronteiras mais corriqueiras ao fornecer uma plataforma para repensar certos contextos. Através de cenários imaginários, chegamos ao real, e as metodologias especulativas lançam luz sobre as complexas dinâmicas da colonização e suas ramificações culturais e sociais. A visão otimista de um futuro utópico na ficção científica, em amálgama às decepções distópicas, servem de ferramenta reflexiva para repensar o nosso contemporâneo olhar sobre as produções do período colonial no Brasil, questionando idealizações simplistas, abordagens formalistas limitantes e instigando uma análise mais crítica com base na reflexão histórica, social e cultural da época.


Um ponto de partida fundamental é a exploração da problemática noção do ideal de colonização presente nas narrativas literárias especulativas e sua correlação com as narrativas tradicionais no contexto acadêmico dentro do estudo da Arte Colonial Brasileira. Facilmente, ainda hoje, os teóricos e historiadores da arte caem na construção de analises com base em uma metodologia colonizadora, como os artistas que vinham ao Brasil para “fazer um catálogo das igrejas e capelas mais importantes, fotografar dentro e fora estudando o estilo de ‘forragem de madeira’ (talha) dos interiores, olhar as esculturas ou pinturas de valor, observar o arranjo da sacristia” (SMITH, 1937), caindo na mesma questão das obras de ficção científica clássicas: a romantização da colonização, como algo que poderia, naturalmente, produzir algo unicamente belo.


Tendo em mente a problemática, somos chamados, dessa maneira, a um exercício necessário para os pesquisadores, que diz respeito não apenas ao já muito reforçado exercício do olhar voltado para as imagens, mas também para aquilo que se diz sobre elas; as potencialidades na mediação de relações sociais - o seu agenciamento (SILVA, 2018).


A aproximação dos conceitos especulativos da ficção científica não firma-se apenas em um luxo de inovação metodológica, mas como uma necessária relação, clara e urgente, dos padrões que ainda hoje são perpetuados por aqueles que concentram o privilégio da pesquisa. Perceber as produções coloniais brasileiras de forma restrita à catarse não mais se sustenta. Faz-se necessário a perpetuação da história, de uma investigação profunda do social e do cultural, que justifique o resultado final encontrado pelo público visitante às diversas exposições/visitações aos ícones coloniais.


Da mesma forma que o gênero da ficção científica vêm se reinventando nas temáticas, e cada vez mais abandonando a urgência de pensar um futuro dentro da colonização, as metodologias mais humanas da Arte podem abraçar esse movimento, indo de encontro com análises mais críticas, sociais e culturais da Arte Colonial Brasileira, e muito menos romantizada.

 


Considerações Finais


A história da colonização do Brasil apresenta um legado bastante complexo que vai além das camadas superficiais, dando origem a narrativas e expressões artísticas que espelham as visões dos colonizadores e dos povos colonizados. Nesse sentido, um olhar limitado à Arte Colonial Brasileira por séculos desempenhou um papel proeminente na promoção dos ideais colonizadores que moldaram o curso da nação.


Contudo, chegou-se o tempo em que é possível perceber que por trás das elaboradas representações em pinturas, esculturas e objetos de arte, escondem-se relatos de conquista, violência e resistência, frequentemente eclipsados pela narrativa predominante.

A aplicação de princípios da ficção científica, como um gênero que vem se reeinventando dentro dos seus próprios conceitos, a essas obras de arte nos permite desvelar novas facetas e interpretações, desmantelar estereótipos enraizados, lançando luz sobre perspectivas subalternas que frequentemente foram relegadas a segundo plano e, principalmente, abrindo mal desse fetiche pela colonização heroica/bela.


Sobretudo, a Arte Colonial Brasileira, no meio de suas múltiplas complexidades, permanece como um campo de estudo vital, que hoje requer uma análise mais crítica para reconhecer as vozes que foram silenciadas no passado. A ficção científica, como demonstrado ao longo deste estudo, emerge como uma ferramenta poderosa para desvendar, com dignidade, o intricado tecido da história colonial brasileira, ressaltando perspectivas que foram negligenciadas, desconstruindo estereótipos arraigados e revelando as complexidades na história da colonização brasileira.

 


Referências

ASIMOV, Isaac. No mundo da ficção científica. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984.

DA SILVA, Francislei Lima. Barrocos em confronto: narrativas em disputa em torno da arte colonial no Brasil. Encontro de História da Arte, n. 13, p. 402-411, 2018.

FRONER, Yacy-Ara. Arte Colonial Brasileira: lacunas e abrangência; análise e métodos de aproximação. Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, p. 55.

SMITH, Robert Chester. A report of a trip through Brazil understaken in march 1937 under auspices of the American Council of Learned Societies. 1937a. Relatório.

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