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A ficção científica surge do medo?

Gabriel Mello











Bom, talvez "a ficção científica surge do medo" não seja a melhor pergunta a se fazer. Talvez o melhor fosse se perguntar: por que a ficção científica surge do medo?


A verdade é que a ficção científica é um gênero que por natureza consegue externar diversas sensibilidades do ser humano, e por isso frequentemente reflete medos e ansiedades. E a razão para isso está totalmente enraizada na própria natureza desse gênero especulativo, que busca não só imaginar futuros alternativos, com mundos distantes e cenários tecnológicos extremos, mas também gerar posicionamentos contra avanços tecnológicos ou denúncias às extremas racionalizações humanas.


A construção da imagem de um "homem racional" está manchada na história do pensamento ocidental, particularmente durante o Iluminismo, quando a ênfase na razão e na lógica começou a dominar a compreensão da natureza humana e da sociedade. Durante o século XVIII, figuras como a de René Descartes e a de Immanuel Kant propagavam a ideia de que a razão era a base fundamental para o conhecimento e a moralidade, separando-nos não só das outras espécies – que seriam consideradas incapazes de raciocinar –, mas também do nosso próprio mundo.


E este ideal do "homem racional" foi fundamental para o desenvolvimento da ciência moderna ocidentalizada e das estruturas sociais baseadas em princípios mais lógicos e objetivos. Contudo, a mesma visão de racionalidade também começou a ser questionada e reavaliada com o surgimento de novos paradigmas entre o século XIX e XX, incluindo as críticas da psicologia e da sociologia que evidenciaram a complexidade da condição humana além das simples definições racionais, revelando que a razão não é o único motor das decisões e comportamentos humanos.


Embora seja inegável o quanto a ficção científica bebeu de uma concepção de racionalidade humana para se fundamentar, também na sua origem há um fator quase que esquecido, mas que teceu e guiou as especulações da FC até os dias de hoje: o medo.


A sensação de medo, frequentemente subestimada, é uma capacidade essencial que molda tanto a criação quanto a interpretação de narrativas. Desde os primeiros contos de ficção científica, a temática do medo do desconhecido e do potencial destrutivo da tecnologia emergente esteve presente, como profunda inquietação com os limites da razão e da moralidade humana. Neste caso, não há exemplo melhor do que "Frankenstein", de Mary Shelley, como obra canonicamente utilizada para demarcar "o começo da FC", mesmo sendo um trabalho de terror gótico.


Caso você deseje saber um pouco mais de "Frankestein" e da vida de Mary Shelley, recomendo o texto da coluna de Arte/Literatura: Mary Shelley e o Monstro Criado por Mulheres


À medida que a ficção científica avançava ao longo do século XIX e XX, esse medo evoluiu para refletir novas preocupações, como a possibilidade de uma inteligência artificial que ultrapassaria a compreensão humana ou a ameaça existencial representada por armas de destruição em massa. Autores como H.G. Wells e Philip K. Dick usaram a ficção científica não apenas para especular sobre futuros tecnológicos, mas também para examinar as ansiedades culturais e sociais de suas épocas. Essas obras frequentemente se deparam com o conceito de que, embora a razão seja uma ferramenta poderosa, ela também pode falhar em capturar a totalidade da experiência humana e suas complexidades.


Um subgênero que exemplifica essa interação entre ficção científica e terror é o horror cósmico, que foi popularizado por H.P. Lovecraft. O horror cósmico nos mostra a insignificância do ser humano diante das vastas e incompreensíveis forças do universo. Ele inverte o jogo – colocando o ser humano como um ente irracional – enquanto enfatiza a ideia de que o cosmos é indiferente à nossa existência, e que a nossa compreensão do mundo é frágil e limitada.


As criaturas e entidades descritas nesse subgênero muitas vezes vão contra uma lógica específica, diferentemente do que ocorre nas histórias mais tradicionais da FC, mostrando uma realidade que é muito mais aterradora do que qualquer ameaça conhecida. Vale lembrar que este típico tipo de horror não se baseia apenas em sustos viscerais, mas sim em um profundo sentimento de desesperança e de terror diante da vastidão do desconhecido.


E por isso é tão importante perceber que o medo serve como espelho das nossas inseguranças sobre a condição humana. Ele é uma tensão entre o desejo de controle e a inevitabilidade da imprevisibilidade. A ficção científica se torna, então, um campo onde esses medos são dramatizados e explorados, permitindo que os leitores – também como especuladores – confrontem e processem as suas próprias ansiedades sobre o futuro e a natureza da humanidade.


No final das contas, a ficção científica utiliza o medo não como um mero dispositivo narrativo e banal, mas como uma forma de denunciar a natureza da razão e da irracionalidade, da ordem e do caos, que às vezes mais nos pertence do que a própria "racionalidade". Até porque, quem não tem medo de olhar para o futuro?


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1 Comment


Gabriel, bom demais! Taí uma coluna que sempre gosto de ler.


O medo talvez seja a emoção mais basilar, a que nos torna humanos. Assim, ao imaginarmos novos mundos, tecnologias e relações sua presença torna-se intrínseca ao próprio criar, enquanto processo de autoexpressão, pois todos o sentimos, em diferentes níveis (ansiedade, pavor) e contextos (sociedade, carreira, religião etc.).


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