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A ficção como ferramenta de acolhimento e compreensão da neurodivergência no mundo contemporâneo.

Carolina Brito










A ficção nasceu da necessidade do ser humano de ir além daquilo que lhe é oferecido no presente. É por meio dela que desenvolve-se um campo no qual somos capazes de superar o mundo real e suas limitações, sejam elas de natureza física, mental, ideológica ou sistêmica. 


Com o tempo, a ficção desenvolveu diversos caráteres, dos quais dois em particular nos servirão de objeto de análise neste texto. O primeiro é o caráter antecipatório, vanguardista, a certos movimentos e organizações sociais, seja para incitar o pensamento crítico e gerar uma reflexão coletiva, seja para escancarar padrões e comportamentos datados, dando luz à parcelas invisibilizadas da população, preconceitos arraigados e estruturas de manutenção de desigualdades como um todo. Tomo a liberdade de simplificar este caráter como progressista, entre várias aspas, para efeitos de exemplificação. 


O segundo, trata-se de uma vertente da ficção bastante dicotômica à anterior, na qual há uma exacerbada idealização da realidade, na qual criam-se e disseminam-se parâmetros e expectativas irreais e inalcançáveis sobre diversos aspectos da vida, o que automaticamente inferioriza, despreza e zomba de tudo o que não corresponder ao que foi determinado e supervalorizado como padrão, seja ele estético, financeiro, intelectual, moral, entre outros. Simplificando novamente, podemos chamar este de caráter excludente, já que seu resultado vai na contramão da abrangência e da inclusão.


No mundo globalizado, o acesso e o consumo de ficção foi facilitado, mas o poder de produzir de distribuir ficção de grande alcance se manteve restrito, o que nos obrigava a lidar com ondas alternadas entre produções progressistas e excludentes, sendo que ditavam como certos temas eram, ou não, discutidos pela opinião pública.


Foi só com a descentralização da produção de conteúdo, oriunda do avanço da própria internet, aliado a uma maior disponibilidade de equipamentos eletrônicos de captação e edição, que pavimentou o caminho até o cenário atual, com inúmeros serviços de conteúdo On demand disponíveis, dos gratuitos aos pagos por assinatura, dos grandes conglomerados de Hollywood aos produtores independentes.


Agora, vivemos ondas simultâneas de ficção progressista e excludente. De forma que, cabe a nós alternar entre elas conforme achamos conveniente. A audiência deixou de ter um papel passivo para tornar-se senhora daquilo que consome, e esse poder de escolha muda tudo.

Introduzido o campo ficcional, podemos então abordar a neurodivergência. No plano da ficção, a neurodiversidade retratada com naturalidade é muito recente. Historicamente, personagens neurodivergentes eram extremamente estereotipados, ora como ingênuos e incapazes, ora como alívio cômico ou recurso de comoção do público, muito comuns na vertente que chamamos aqui de excludente. Exemplos dessas abordagens podem ser encontradas em produções como Rain Man (1989) e Forrest Gump (1994), ambas aclamadas pelo público e pela crítica especializada. Pouco ou nada é explorado sobre o ponto de vista das pessoas neurodivergentes sobre suas próprias vivências de forma autêntica. Nos dois longas, a neurodivergência das personagens é tratada como um empecilho para elas próprias e para os outros, o que não só reflete mas também reforça que esta era a visão amplamente difundida na sociedade da época

Já em produções mais recentes, é possível encontrar um trabalho ficcional mais cuidadoso e bem-elaborado sobre o tema. Séries como Atypical (2017) e The Good Doctor (2017) têm protagonistas abertamente neurodivergentes que contam suas vivências de forma natural, explorando nuances verossímeis da neurodivergência, sem que isso ofusque ou implique em não abordar outros dilemas de suas vidas, como escolher uma carreira, tornar-se calouro na universidade, engatar um relacionamento amoroso, conquistar respeito e admiração no trabalho, entre diversos outros acontecimentos comuns a todos nós, neurodivergentes ou não.

Dar profundidade a outros aspectos da vida destas personagens que extrapolam sua condição neurológica e se conectam com os conflitos universais do ser humano é, em essência, o exercício da vertente progressista da ficção. É trazer a neurodiversidade para a pauta central com o respeito devido, fugindo dos estereótipos de outrora e possibilitando produções cada vez mais inclusivas, autônomas e com potencial enorme para causar reflexões e impactos reais na sociedade contemporânea, para que esta então, tenha o mínimo de repertório para compreender e acolher sua imensa neurodiversidade. 



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2 Comments


Carolina, perspicaz sua análise, cujo uso da simplificação foi justificada, apresentada e cabível!


Assim, mesmo comédias e respectivas estereotipizações, se bem trabalhadas, podem trazer à tona aspectos importantes e momentos de reflexão que enaltecem a forma diferenciada de abordagem, os dilemas e as vivissitudes de neurodivergentes, p.ex., como em The Big Bang Theory.

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Texto extremamente pertinente!

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