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A força estranha do maravilhoso latino-americano







Em uma cena do romance A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, após uma série de encontros e descobertas, os personagens Samuel e Aécio perguntam-se sobre essa força estranha. O que seria? E não... não falaremos sob a composição de Caetano Veloso na voz de Gal Gosta ou Roberto Carlos, mas vale resgatar que, de fato, “a vida é amiga da arte”.


Aqui, não se trata de diferenciar o mágico, o fantástico ou o maravilhoso. No próprio desenvolvimento da história da Estética, o verossímil e o possível foram questões fundamentais. Aristóteles já falava sobre o thaumaston (assombro ou maravilhoso). Entretanto, pode-se dizer que o avanço da atividade artística é mais dinâmico do que o avanço da teoria.


A literatura, com sua riqueza de formas e conteúdos, sempre nos proporcionou grandes obras com tais elementos, de Homero a Cervantes, de Defoe a Goethe, de Hoffman a Poe.

O que cabe aqui é uma defesa: o maravilhoso é a categoria mais adequada para se tratar dessa literatura realista produzida na América Latina no século XX. Por que esse particular tipo de literatura teve suas bases férteis aqui, e por que as imagens criadas, ditas extraordinárias e sobrenaturais, são possíveis e esteticamente verossímeis? Trabalho com a hipótese de que é uma forma compositiva que, em seu conteúdo, trata das contradições da sociedade de classes, do desenvolvimento desta no capitalismo periférico e do processo de modernização conservadora.


"Carroça enfeitada" de Carybé (1950)
"Carroça enfeitada" de Carybé (1950)


Um breve itinerário entre centro e periferia


No final do século XIX e início do século XX, o surrealismo trazia a fantasia onírica e a utopia política, sobretudo no período entreguerras. Em 1925, Franz Roh, crítico de arte, publicou um ensaio sobre um movimento artístico pós-expressionista e utilizou o termo realismo mágico. Ali, contrapunha-se o horror do inferno ao horror do tempo presente, o mundo dos sonhos e a fidelidade ao mundo real. Parece ser uma insatisfação com as promessas emancipatórias da modernidade, e, sobretudo, toma a Europa como centro da discussão.


Vejamos mais de perto uma relação entre história e literatura: Marx expõe o caráter do misterioso mundo das mercadorias enquanto China Miéville, escritor do new weird britânico, diz que isso é fundamental para que as nossas relações sociais assumam uma forma fantasmagórica: que “as relações sociais cotidianas [...] são os sonhos, as ideias [...] das mercadorias que reinam”. Ou seja, as nossas relações tomam uma forma de ilusão real. Os feitiços e as bruxarias que Marx fala n’O Capital não são superstições ou ficções da mente humana, elas se relacionam com o conjunto de práticas reais do capitalismo, que distorcem e invertem o sentido das coisas. O capitalismo avança, recua as barreiras naturais e transforma uma terra seca numa fértil e vice-versa, agora as coisas se humanizam e as pessoas se coisificam.


Se na Europa, essa ilusão do real já produzira um contexto para o surgimento do fantástico e do mágico, na América Latina, as relações sociais estariam dissolvidas numa legitimação da dependência colonial, com a finalidade de naturalizar as construções sociais. Esse é o processo da modernização conservadora. E então, surge o realismo maravilhoso como modo de figuração desse aprofundamento da barbárie.

 


O real maravilhoso


A figuração mágica e fantástica pode ser encontrada em diversas obras do cânone europeu. Já o real maravilhoso é particularmente ligado à realidade concreta latino-americana, suas formações sociais, econômicas e políticas distintas que entram em choque progressivamente.


É a relação entre a vida e a arte que produz essa força estranha, no sentido de irromper com a ordem ordinária, causar assombro na superfície das coisas a fim de figurar as forças essenciais  que movem a nossa história


"Feira noturna" de Carybé (1950)
"Feira noturna" de Carybé (1950)

Desse modo, abrem-se as possibilidades de mudança, da desfetichização, de contrariar o movimento de inversão do sentido de nossas relações. Isto é, captar as contradições da inserção da América Latina no desenvolvimento do capitalismo, e, diferente da evasão no horror, tomar uma posição frente à questão histórica de nossa condição dependente, periférica e colonial.


Sobretudo, a agenda do realismo maravilhoso latino-americano de Alejo Carpentier, José J. Veiga, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez, é de subverter o “beco sem saída” do momento histórico com uma força capaz de sugerir a verdade das coisas, colocando um fim na relações fantasmagóricas e figurando-as como essencialmente humanas.


Referência

MIÉVILLE, China. Marxismo e fantasia. Margem esquerda

 


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