A Guerra dos Rohirrim e o Crepúsculo do Belo Reino: Um Passo Adiante ou um Desvio?
- Volnei Freitas
- 17 de mar.
- 4 min de leitura

Eu me lembro do silêncio enquanto via a população chegar ao abismo. Abismo de Helm. E, em uma rápida cena de O Senhor dos Anéis: as Duas Torres, o rei que imagina ao ler o livro, com punhos de aço, último bastião de sua linhagem - que defendeu seu reino matando inimigos com suas mãos e esmagando suas almas de pavor com sua trombeta - estava lá: uma estátua a intimidar todos os inimigos do reino sobre as muralhas de sua fortaleza intransponível.
A Terra-média de Tolkien é um espaço mítico onde a beleza e o heroísmo lutam para resistir à decadência. Nesse universo, Rohan sempre ocupou um lugar peculiar: uma nação de cavaleiros, orgulhosa e guerreira, cujo esplendor evocava os antigos reinos dos homens, mas cujo destino apontava para um futuro de sombras e perdas. Com O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim, a animação dirigida por Kenji Kamiyama, de Ghost in the Shell, busca resgatar esse pedaço do legendarium (conjunto de textos que compõem a mitologia e o mundo imaginário do autor) tolkieniano.

Todavia, será que, ao explorar o passado de Rohan, o filme se insere na tradição do Belo Reino ou se afasta dele?
Essencialmente, a narrativa gira em torno de Helm Mão-de-Martelo e sua filha, Héra, peças centrais em uma guerra desencadeada por uma traição política. A morte de Freca, um lorde dos terrapardenses, por um único golpe mortal de Helm em um combate individual após troca de insultos, leva seu filho Wulf, de pretendente à filha do rei a exilado com o juízo nublado pela vingança, colocando Rohan sob cerco e tomando sempre ações contrárias às indicadas por seu sábio general Targg.
Eis que, sobre esta base, a perspectiva feminina, até então pouco explorada, ganha presença fazendo Héra – personagem sequer nomeada no legendarium – posicionar-se como líder e guerreira. A abordagem adiciona um novo olhar ao cânone, mas até que ponto uma história pode expandir tal mitologia sem comprometer seus fundamentos?
Comecemos por um aspecto central: a história se afasta da luta épica entre o bem e o mal, para se aproximar de um drama político e familiar. Traições, vinganças pessoais e dilemas morais transformam A Guerra dos Rohirrim em algo mais próximo de Game of Thrones do que de O Silmarillion. Em Tolkien, a luta dos homens, elfos e anões contra a Sombra (de Mordor) nunca foi apenas um jogo de poder; era uma luta existencial, a resistência contra a corrupção que devorava civilizações inteiras, visão da qual o animê carece.
No anime, a guerra parece menos uma manifestação desse embate cósmico, reflexo dos próprios Valar, e mais um drama humano centrado em personagens e seus conflitos internos. Isso pode tornar a trama acessível e emocionalmente envolvente a um novo público; ao passo que também descaracteriza o tom elevado, de nobres valores, da obra original para seus fãs.
Por falar em novo público e novos tempos, falemos do encaixe do empoderamento feminino. Sem dúvida deve ser celebrado! Contudo, qualquer obra não pode carecer de equilíbrio, de coerência interna. As apostas nas aparições, atos e escolhas de Fréaláf, sobrinho do rei, figura a sucedê-lo no trono e protetor de Héra, aliados ao mito das donzelas escudeiras representadas por Olwyn, sua guardiã, são as únicas estruturas narrativas que conferem autenticidade à criação da forte personalidade feminina-guerreira-rebelde ante o não aprofundamento nos dilemas do restante de sua família.
Nesse contexto, outra nova escolha: adaptar e ampliar a história para o formato de anime a fim de conferir à Terra-média uma nova estética. O resultado visual impressiona em alguns trechos, ao mesmo tempo que causa estranhamento, evocando mais a experiência do diretor com a dinâmica de “Ghost in the Shell” do que os tons contemplativos da trilogia cinematográfica de Peter Jackson ou o ritmo de campanha da prosa de Tolkien. Essa Terra-média estilizada e estilisticamente arrojada me parece se distanciar do tom solene e mítico proposto pelo autor.
Tolkien descreveu com um lirismo cuidadoso, repleto de melancolia e grandiosidade suas terras e suas gentes. Privilegiou a construção de atmosferas e da passagem do tempo como um elemento narrativo essencial. Em contrapartida, a estética da animação japonesa enfatiza o movimento veloz e o dinamismo. A poderosa narração de Éowyn (a filha do rei na trilogia que destrói o rei-bruxo de Angmar, dublada pela atriz que a interpretou) parece introduzir e, ao longo da animação, reconduzir o espectador à essência original, que se esvai nos meandros das histórias das personagens.
Assim, mesmo que a escolha por essa nova dinâmica traga frescor ao universo, questiono-me se o ritmo e a plasticidade do anime se encaixam na cadência tolkieniana.
Ao que parece, a recepção crítica do filme refletiu uma resposta a essa dúvida. Nota no Rotten Tomatoes: 48%. Parte da crítica elogia o espetáculo visual e a complexidade emocional dos personagens principais – na minha opinião esquecendo-se, por exemplo, dos clichês vilanescos de Freca e Wulf, ou dos comportamentos heróicos plain vanilla dos filhos de Helm – enquanto outros apontam que a narrativa se afasta do espírito tolkieniano.
E, no fim, A Guerra dos Rohirrim torna-se um experimento interessante, uma tentativa de expandir o universo da Terra-média. Mas seu distanciamento dos nobres ideais reflexos do “Belo Reino” levanta a questão: para onde exatamente a obra pode levar esse universo? Se a Terra-média se transformar em um cenário onde qualquer tipo de história pode ser contado sem preservar seu ethos central, corremos o risco de vê-la diluir-se até perder sua preciosa identidade.
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