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A obrigação da maternidade no século XX em “Uma Galinha”, de Clarice Lispector

Thainá Christine; profesora, revisora e escritora,










Até a primeira metade do século XX, a maternidade era imposta para a mulher como uma obrigação e dever. Aquelas que se recusassem a isso, eram vistas como mulheres sem propósito e que não mereciam estar inclusas na sociedade. Ser mãe era visto como uma dádiva e algo inerte da mulher, sendo assim confirmado a pressão e idealização em cima da maternidade.


A primeira leitura que fiz, na qual a maternidade me chamou grande atenção, foi o conto “Uma Galinha”, de Clarice Lispector, publicado no livro “Laços de Família” em 1960. Nessa história o leitor é levado a acompanhar a fuga de uma galinha para não ser morta e cozinhada para o almoço de uma família. Através dessa fuga e correria para capturá-la, serão expostas reflexões sobre o papel da mulher e sua relação com a maternidade durante o século XX.


Logo no início do conto a narradora onisciente afirma sobre a galinha que “mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio” (LISPECTOR, 2016, p. 156), relacionando-a, desde o princípio, com a própria mulher, ambas não passando de um objeto nas mãos de seu dono.


Em seguida, no terceiro parágrafo, o leitor é arrematado com a fuga repentina do animal. A galinha, confusa e sozinha, não sabe como agir fora daquela morada imposta para si por toda a vida e nem para onde ir, estando pela primeira vez exposta aos seus próprios cuidados e decisões. Da mesma maneira acontecia com a mulher, que era sujeita a manter-se dentro de casa, sem saber o que havia de belo no lado de fora ou se um dia poderia seguir por conta própria.


Porém o desejo por liberdade era tão intenso que nem mesmo a solidão de tal fuga fez com que a galinha pensasse, por um minuto sequer, em desistir. Ela estava sozinha no mundo, sem familiares ou amigas, mas, mesmo assim, ser livre era tudo que almejava.


No quinto parágrafo, a narradora compara a força de um galo com a impotência de uma galinha, assim como em sociedade o homem é colocado como um ser forte, protetor e ativo, enquanto a mulher era vista como alguém frágil, fraca e emotiva. Além disso, também é citada a maneira como uma galinha é facilmente trocada pela outra, como se nenhuma delas tivesse um verdadeiro valor, assim como a própria mulher que era obrigada a casar-se por arranjo, sem amor, mas que poderia a qualquer momento ser substituída por outra, uma mais jovem, mais bonita e mais obediente.


Entretanto a fuga torna-se um fracasso e a galinha é, então, capturada por seu dono. A sua vida está prestes a ser findada, com mais êxito dessa vez, quando o animal surpreende a família ao colocar um ovo. O ato não passa despercebido pela família e muito menos pela galinha, que institivamente sabe que agora o seu papel é chocar o ovo, assim como a mulher quando engravidava sabia que a sua vida passava a ser somente sobre a maternidade, sobre ser mãe.


Galinha e mulher agora passavam a ser restritas aos deveres de serem mãe, sendo vistas como uma espécie de santidade e intocáveis, tornando-se agora cuidadoras de uma nova vida. Ovo e filho agora passavam a ser o centro da vida de ambas, a ser quem elas eram.

Após tal acontecimento, a galinha tornou-se parte da família, ao menos de maneira viva e superficial. Aos olhos dos moradores da casa, deixar que a galinha cuidasse do filho era uma questão de dignidade, de um ato do bem, de um dever. Não matar a galinha naquele momento os tornavam boas pessoas, salvadores, mesmo que isso significasse continuar deixando-a presa, ceifando sua liberdade.


Com a mulher não era diferente. Sua liberdade era extinguida no momento em que se tornava mãe, pois a partir do parto os cuidados e a atenção eram voltados especialmente ao bebê e a criação dele. Assim como no caso da galinha, o homem também se via como alguém benevolente, justo, ao anular a vida da mulher em sociedade, agora mãe.


Quase no fim da narração ainda é exposto o resto de esperança que a galinha nutre ao pensar em sua quase liberdade. Mesmo que agora o ovo tenha se tornado o ápice de sua vivência, ser quem ela é e livre daqueles que a possuem ainda é como um sonho. Para a mulher o gosto de uma possível liberdade não é diferente, pois também era vista como algo longe, um desejo inalcançável.


No entanto, nas últimas linhas do conto, a vida da galinha é ceifada permanentemente. A narradora anuncia que “um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos” (LISPECTOR, 2016, p. 158), o que transmite ao leitor uma impressão fria de que a morte da galinha foi apenas a morte de mais uma e que isso será repetido sucessivamente com outras iguais.


No século XX, era assim que as mulheres se sentiam quando a liberdade lhes era ceifada: se sentiam mortas, sem vida. Por mais que o amor pelo filho fosse maior que tudo, a imposição da maternidade ainda recaia como um ato impiedoso, sufocador e sem escolhas, muitas vezes sendo um ato de morte.


Do mesmo modo que a galinha não pode escolher entre voar para longe, chocar um ovo ou ser assassinada por seus donos, a mulher também não tinha a escolha entre ser mãe ou ser mulher, pois automaticamente se você era mulher a sua obrigação era ser mãe, e nada diferente disso poderia ser conquistado ou almejado.


Clarice Lispector nunca escreveu como os demais autores. Sendo considerada uma das vozes mais importantes do século XX, a escritora dedicou-se a compor obras que traziam um foco maior nas mulheres, seja em seus sentimentos, em seus pensamentos, em seus desejos mais íntimos ou em suas vivências.


É verdade que a sua obra poderia – e ainda pode – ser lida e apreciada por qualquer pessoa, homem ou mulher, mas é inegável que suas palavras atingiam com mais força o segundo grupo.


Clarice Lispector é um dos maiores nomes da Literatura Nacional, principalmente quando a pauta se restringe apenas as mulheres escritoras. Ela escreve de forma magistral, relacionando metáforas com a realidade e criando personagens femininas distintas de sua época, o século XX.


Além disso, Clarice também obriga o leitor a refletir e ir além do que está exposto nas linhas de seus textos, mostrando que há muito mais a se pensar do que apenas aquilo que está escrito. Ela choca, confunde, maravilha. Ela cria mundos e personagens com grande espírito, motivações e luz, gerando debates que perduram até os dias de hoje.


Por isso, o conto "Uma Galinha" ainda é tão importante e tão necessário. Afinal, o tema abordado na história ainda permanece real e crível mesmo após o término do século XX e o início de um novo: a pressão colocada em cima da mulher para ser mãe e a idealização de uma maternidade exposta como o objetivo de vida da mulher, como uma obrigação.

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