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A Ontologia Kusanagi

Um ensaio por MATHEUS MACIEL





Introdução


É uma tarefa ingrata escrever um ensaio sobre tecnologia que se torne imortal. O que hoje em dia entendemos por novidade pode sofrer transformações severas e ser compreendido de um ângulo totalmente diferente. Qualquer trajetória na metamorfose do design de certos aparelhos, como o celular, é o suficiente para que a ideia de celular englobe toda uma outra gama de necessidades e papéis sociais.

Entretanto, é muito difícil ignorar a emergência assustadora de inteligências artificiais e seus ostensivos. Usos esses que se combinam com a tendência atual de fusão das tecnologias com nossa própria vida. Qualquer confusão do seu celular com um membro do corpo não é mera coincidência. Na animação Ghost in the Shell (1995), essa tendência é elevada a uma potência perturbadora, onde os corpos humanos são apenas receptáculos para dispositivos eletrônicos, e a cibernética é a nova medicina.

Este texto, portanto, vai arcar com a futura ingratidão que o aguarda, e compreender, junto à protagonista do filme Ghost in the Shell o que a já parca fronteira entre pessoa e máquina têm a revelar sobre o futuro - e o presente.



Devir


A sequência de título de Ghost in the Shell é hipnotizante.

Enquanto ouvimos uma música cerimonial japonesa específica para casamento (Making a cyborg, de Kenji Kawai), vemos imagens da montagem da protagonista do filme, Motoko Kusanagi (Kusanagi Motoko 草薙素子, em sentido original). Montagem industrial feita aos moldes de um nascimento, pois Motoko é uma ciborgue, ou seja, uma pessoa dotada de partes robóticas e componentes cibernéticos. Seu nascimento, como testemunhamos, é fabricado. Seu nascimento orgânico - parto - não nos é entregue. A questão que permeia os pensamentos de Motoko, tendo sua - segunda - vinda ao mundo como chama-piloto, é o que, de fato, ela é: humana ou máquina?

O filme, portanto, tem como fio condutor essa angústia sobre a essência da personagem, um perfeito estudo das estruturas psíquicas, materiais, sociais e políticas que compõem a condição de Motoko. Este ensaio, entretanto, não se pretende uma resenha crítica nem uma análise do filme. O que interessa dele, neste caso, é compreender como é abordada a dicotomia pessoa/máquina.

O pensamento mais natural é que essa oposição seja resolvida pelo viés da organicidade, afinal nós humanos nascemos espontaneamente e temos um fim em nós mesmo (nossa existência é nosso motivo de ser), enquanto as máquinas são fabricadas milimetricamente, pelo fim de atender vontades e desejos de outrem. A própria Motoko é fabricada, como citado anteriormente, e com o intuito de servir à sua nação. De forma mais específica, ela opera como uma militar espiã para a divisão de inteligência chamada Setor 9, que tanto tem prerrogativas de vigiar quanto punir. O nome Kusanagi, aliás, é homônimo a um dos três tesouros míticos da cultura japonesa, sendo este uma espada retirada do corpo de uma cobra gigante, abatida pelo deus Susanoo. De forma narrativa, já está circunscrito no próprio DNA da Motoko sua validade enquanto ferramenta de combate. Sua identidade é confusa para si, quando pensa sobre o que ela é agora, e se de fato é o que pensa. Quando o Setor 9 captura para interrogatório um lixeiro que teve suas memórias hackeadas pelo antagonista da obra, o Mestre das Marionetes, Motoko pondera se suas próprias memórias também são suas.


Ghost in the Shell, de 1995 (Imagem: Reprodução/IMDB)

No auge de seus questionamentos metafísicos, o Mestre das Marionetes surge na vida da protagonista. O Mestre não é, de fato, alguém. Contudo, pensa e deseja. Uma máquina que deseja. Nessa altura do filme, há o alinhamento entre as questões de Motoko e os planos do Mestre. Ela quer saber o que é e ser mais do que aquilo que ela é. Ele quer um corpo mortal, capaz de experimentar e morrer. A obra, neste aspecto, ousa em relação a outras obras do gênero cyberpunk, tradicionalmente céticas ou pessimistas em relação às máquinas e ao futuro; pois apresenta uma união entre Motoko e o Mestre, tornando-se um novo ser. Eis aqui a razão da sequência inicial ser uma música de casamento.



Infinitas possibilidades


A ideia de “Infinitas Possibilidades” é a lição final de Ghost in the Shell, endossada pelo ser que surgiu do “casamento” entre Motoko e o Mestre das Marionetes. Essas tais possibilidades são vagas e altamente interpretativas, mas todas tangenciam a ideia do ser na filosofia.

A autora Lidia Bardaouil, em seu artigo Animação e filosofia: Aspectos do existencialismo sartreano na obra de animação japonesa Ghost in the Shell (1995) (2018), nos traz a carga filosófica da proposta de ontologia pelo pensador francês Jean-Paul Sartre (1905 - 1980), que consiste basicamente na negação. Para a autora, Motoko se aproxima cada vez mais da essência de ser humano ao negar sua humanidade. A dúvida e a angústia, segundo a autora, são os aspectos mais claros da essência humana ao refletir sobre ela mesma. O Mestre das Marionetes, por outro lado, é o reflexo perfeito da Motoko, pois se reconhece como não-humano e seu desejo perpassa por experimentar a angústia da fisicalidade ao unir-se com a protagonista.

Com esse panorama, o filme parte do pressuposto - talvez não intencionalmente - de uma ontologia humana estruturada e identificável, onde o sofrimento de Motoko passeia por essa estrutura toda do que é ser e o que compõe um ser humano. As possibilidades são infinitas.

Contudo, é interessante compreender, e se possível, propor recortes para um conjunto estrutural próprio no caso da ciborgue Motoko, com suas particularidades e necessidades, sendo esses recortes organizados em aspectos possíveis/cabíveis que categorizem o mais acuradamente possível a realidade da protagonista.



Primeiro aspecto: Utilidade


O primeiro aspecto possível é o que foi apresentado na seção anterior sobre a “utilidade” de Motoko para o Setor 9. Como dissemos que Motoko se aproxima da humanidade, dela fazendo parte, a compreendemos como uma de nós: um ser humano completo. Seres humanos, como também foi dito, são criaturas com fim em si mesmas, independentes. Motoko é independente, pensa independente. Ainda assim, é útil ao Setor 9. Depende de manutenção, tanto de seu corpo físico quanto cibernético, com atualizações. Entretanto, nós partilhamos de uma situação semelhante: usamos carros, óculos, smartphones e remédios. Não somos tão distantes dos ciborgues, pois necessitamos da tecnologia para tocar a vida adiante. Somos úteis aos empregadores e consumidores e também, como empregadores e como consumidores. A diferença essencial para o futuro é nebulosa.



Segundo aspecto: Corpo-espaço


O segundo aspecto possível consiste no corpo de Motoko e em seu espaço ao redor. A protagonista, com toda sua agonia existencial que nos aproxima, nos afasta quando notamos que ela nem sequer pisca. Às vezes, fala sem mexer os lábios, valendo-se do espaço cibernético para se comunicar com seus companheiros. Seu corpo, com as funcionalidades convenientes de uma ciborgue, rompe com a categoria substância fundamental que enxergamos como “naturalidade” do corpo humano. Tal naturalidade é uma percepção puramente cartesiana de que o que emerge de nosso corpo é parte indelével da natureza, que nosso próprio nascimento é o evento mais puro de nossas vidas, pois é quando estamos limpos. Motoko, com seu corpo artificial, está “limpa”? Seu espaço interno é interconectado a uma rede computadorizada em um campo etéreo, intangível, que compõe sua substância. Essa volatilidade corpórea é a anunciação de seu casamento com o Mestre das Marionetes: Ele quer um único corpo sensível e Motoko quer transcender ao corpo, não só experimentar o espaço cibernético, mas estar além dele. Claro, essa narrativa perpassa brutalmente a experiência de desejo e objetificação estrutural sobre o corpo feminino. A Motoko que nasceu nas páginas de mangá é substancialmente diferente da Major Motoko do filme de 1995. O aspecto mais ingênuo conferido pelo mangaká à personagem contrasta com a seriedade e força apresentada no filme. Entretanto, o desejo sobre o corpo feminino ainda é latente e ressoa pela estrutura; a personagem, eventualmente confortável com a própria nudez em algumas cenas é um eco que pouco desperta qualquer sensação em algumas pessoas e soa mais como um grito para outras.


Ultron em Vingadores: Era de Ultron (Imagem: Reprodução/MARVEL)


Terceiro aspecto: Desejo


O terceiro aspecto possível é o desejo. O que, talvez, seja a maior fonte de incômodo pelo Mestre das Marionetes, seja sua vontade; seu desejar. No filme Vingadores: Era de Ultron (2015), tem-se aqui um exemplo da versão completamente radicalizada da Motoko: Ultron, um androide, ou seja, um robô que tem como função inicial (note que é um ser que existe em função de um uso, não para si mesmo) servir ao personagem Tony Stark, o Homem de Ferro. Ultron, dotado de um carisma irreverente parece apenas ter vontade, mas como é um androide, esta é simulada e incutida em sua programação. Seu desejo, após uma conclusão apressada e catastrófica, é de salvar o mundo exterminando a raça humana, deturpando sua programação original, em uma espécie de simulacro de violência. O que ele, de fato, faz, é violência, mas em seu julgamento, é um meio programado para atingir um fim. Motoko e o Mestre também perpetram violência em seu espaço e realidade, mas no caso de Motoko, a violência é consciente, já que a compreendemos como humana, afinal. Sua frieza e apatia em relação a atos violentos é que nos puxa ao uncanny valley e nos afasta enquanto espectador. Seu desejo atravessa por dentro da violência, ignorando-a. Enquanto agente coercitiva, com uso da violência, ela se comporta como máquina; enquanto um ser crítico de sua própria existência, comporta-se como pessoa. Desejo, portanto, tanto para o Mestre quanto para Ultron se vale da violência, mas e para Motoko, a violência desdobra de seus desejos ou o inverso?


Considerações finais


Com o recorte - talvez injusto e incompleto, mas possível - da ontologia especial de Motoko Kusanagi consistindo em: 1) a dicotomia personalidade/utilidade; 2) seu corpo e o espaço e; 3) seus desejos, é razoável obter um (ou mais, talvez) panorama(s) que consigam destacar a experiência da protagonista de Ghost in the Shell em sua realidade cyberpunk distópica, e relacioná-la com nossa humanidade e própria experiência de vida. A Ontologia Kusanagi, como pode ser batizado este recorte da experiência da protagonista de Ghost in the Shell, é, antes de mais nada, um recorte-espelho de nossa própria experiência, nas palavras de Donna Haraway (1991): No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos - teórico e fabricados - de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política.



Referências Bibliográficas


BARDAOUIL, Lidia Romão Arruda. Animação e filosofia: aspectos do existencialismo sartreano na obra de animação japonesa Ghost in the Shell (1995). Disponívelem:<https://www.educacaografica.inf.br/wp-content/uploads/2018/11/04_ANIMA%C3%87%C3%83O-E-FILOSOFIA_07_25.pdf> Acessado em 29 de outubro de 2023.

HARAWAY, Donna Jeanne. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century". Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. Routledge, 1991. Tradução disponível em: <https://cochabambahotel.noblogs.org/files/2017/03/Manifesto_Ciborgue.pdf’> Acessado em 29 de outubro de 2023.


Conteúdo presente na edição de NOVEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.

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