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Amor com A maiúsculo: ancestralidade e pluralidade da deusa Afrodite na literatura antiga

Um ensaio por Bianca de Sousa







INTRODUÇÃO


Para a literatura, o amor é antídoto e motivação. É também consequência e recompensa. Nas mais antigas obras literárias, o amor é uma ferramenta de condução das narrativas. Mas, na Antiga Grécia, o Amor, representado pela deusa Afrodite, era amplamente detalhado nas obras literárias em diferentes contextos. Poemas e mais poemas, inspirados por reflexos de paixão e desejo, exploraram os diversos atributos da deusa na arte a fim de justificar um dos sentimentos mais complexos para humanidade através da personificação de Afrodite.


Os mitos gregos são ricos até hoje como fonte de inspiração para arte. Os seres mitológicos dessa cultura foram por muitos séculos uma forma de explicar as origens e questões filosófico-científicas do universo. E as figuras femininas na mitologia grega são um tanto quanto participativas na construção das narrativas lendárias. Seres como Gaia, Pandora e Ariadne na mitologia, ainda na Antiguidade, descrevem as complexidades da existência da mulher e uma visão patriarcal do que o feminino representa, como por exemplo uma matriarca ou agente de caos ou a principal causadora da empreitada de um herói.


Mas, a deusa Afrodite, a primeira das deusas do Olimpo, chama atenção por outro tipo de complexidade: sua divindade plural, abrangendo atributos interligados mas muito diferentes entre si. Essa pluralidade é explorada por autores na literatura greco romana ao mencionar a deusa em poemas épicos. Mas, mesmo que estejam escrevendo sobre a mesma divindade, Afrodite pode representar uma característica diferente em cada obra a depender da inspiração do autor.


No artigo/ensaio a seguir, iremos explorar as ramificações das virtudes da deusa Afrodite na literatura antiga, sobretudo as obras gregas e romanas, através da ótica de sua gênese, reforçando a ancestralidade da deusa e os simbolismos do seu nascimento; e como três de seus atributos — beleza, erotismo e amor— foram explorados em algumas obras demonstrando a diversidade de suas virtudes no campo romântico para a cultura grega/romana.

 

 

ANCESTRALIDADE E ANTIGUIDADE


Entre espumas e pérolas, o Amor toma forma na mitologia grega após um desentendimento familiar no início dos tempos. Teogonia (VIII-VII a.C.), poema de Hesíodo, também conhecido como Genealogia dos Deuses, narra uma linhagem de seres mitológicos que explicam os porquês do universo. Os princípios naturais do mundo, Terra (Gaia), Céu (Urano), Eros e o Caos são os agentes responsáveis pela ascensão dos deuses após uma linhagem de sucessão dos titãs. No poema, Urano foi abençoado pela Terra com poder para cobri-la e gerar grandes e poderosos filhos. Mas Urano não foi o melhor pai para sua prole.

 


“Quantos da Terra e do Céu nasceram filhos os mais terríveis, detestava-os o pai dês o começo: tão logo cada um deles nascia a todos ocultava, à luz não os permitindo, na cova da Terra.” (vv 154–58).

 


Motivada pela distância de Urano, Gaia forjou a arma que cessaria o domínio do Pai. Os filhos se uniram à Terra para destruí-lo e o grande responsável por tal ato foi o titã Cronos. O filho da Terra e do Céu decide por livre arbítrio se irar contra o pai e parte numa espécie de empreitada voluntária e destinatária para cessar seu domínio. Segundo o poema, numa atitude pra lá de simbólica, ele castrou o “pai estólito” e arremessou seus órgãos reprodutivos ao oceano. O ato determina o clímax da tomada de poder sobre o pai repressor. Determina o fim da sua linhagem e o encerramento de sua força, sua autoridade, sua masculinidade — apesar da representação mística — e seu poder, sobre os filhos e sobre a terra.


A castração de Urano gerou respingos. “Salpicos sanguíneos” como descreveu Hesíodo. A partir deles nasceram os gigantes, as Erínies e algumas ninfas. Mas, seus órgãos jogados ao mar geraram uma espuma e das poderosas águas do Oceano junto aos restos de Urano, o Pai Celeste, nasce a primeira das deusas do Olimpo, Afrodite.


Existem múltiplos simbolismos sobre o gênese da deusa, mas vou explorar apenas três:

 


1. Gregos/romanos têm como característica forte na sua mitologia a aproximação com a humanidade, para que o culto aos deuses e suas explicações sobre o mundo sejam mais ‘críveis’. Então, nas histórias existem diversos atributos humanos em seres mitológicos, inclusive a capacidade de gerar filhos e a representação romântica/sexual, homem-mulher, até mesmo entre figuras como Céu e a Terra;


2. O nascimento de Afrodite através da genitália de Urano se conecta com a representação de erotismo da deusa na cultura greco-romana;


3. Existe uma ironia sobre o nascimento do Amor ocorrer após a queda de Urano, que sofreu a ira de Cronos motivada justamente por negligência, apatia, distanciamento para com os filhos e, naturalmente, falta de amor.

 


Hesíodo narra a origem do mundo para os gregos, antes mesmo de Zeus, Ares e os outros deuses. Antes que houvesse outras figuras divinas sob o Olimpo, lá estava ela, a representação da complexidade do amor, do erotismo e da beleza. Com o tempo, os atributos de Afrodite se tornaram cada vez mais abrangentes, demonstrando como a cultuavam. Uns, pelo belo. Outros, pelo erótico. Mas a grande maioria, por amor.


E essa pluralidade é, até hoje, descrita na arte, principalmente na literatura. Os poetas antigos conseguem demonstrar de forma assertiva o que significa a diversidade de Afrodite nas obras porque ela foi grande fonte de inspiração romântica nas histórias lendárias. 


Em “Ilíada”, o poema que narra os últimos anos da Guerra de Tróia e a jornada de Odisseu, grandes deuses são citados nos versos dos livros. Coadjuvante na obra, Afrodite é citada como figura de beleza e harmonia, capaz de influenciar homens e deuses às suas vontades. 

E beleza, é o primeiro dos atributos da deusa explorado na maioria das obras, porque nesta cultura ela é a personificação do que é belo. Na Grécia Antiga, a beleza estava relacionada ao equilíbrio, harmonia e simetria de proporção nas artes e na natureza. A beleza era cultuada, literalmente, entre homens e mulheres naquele período. Por isso Afrodite era a representação ideal da importância da estética para essa cultura, principalmente no campo feminino. 


Já atualmente, o belo e a estética se adaptam no contemporâneo porque a definição da beleza, assim como da feiura, é uma percepção individual e também sociocultural da sociedade moderna. Hoje, sem a presença de Afrodite, a representação do belo em cada cultura tem diversas variantes, seja no campo das artes ou da estética filosófica. Em obras literárias atuais, sobretudo na ficção, a descrição da beleza feminina é muito mais descritiva do que em poemas como Ilíada, onde Afrodite é a bela deusa que “que faz rir o sorriso no rosto dos homens imortais e mortais”, mas sua aparência física não é citada com tantos detalhes. 


Já o erótico de Afrodite e seu traço de sedução também é muito presente na construção de seu arquétipo. Sua origem, inclusive, é marcada por erotismo. Ela sempre foi, em qualquer contexto mitológico, a persona de sedução e sensualidade incubada no corpo feminino da deusa. E sua beleza se relaciona com aspecto erótico porque o despertar do desejo parte da atração física/sensual de Afrodite, potencializada pela sua beleza indescritível. 


E, por fim, o resultado da beleza e sedução quando aplicadas às histórias que envolvem Afrodite é o amor, seja direcionado à deusa, ou a colocando como a guia do destino para alcançar a plenitude romântica. Apesar da sensualidade e beleza serem atributos muito presentes nos trechos descritivos, as lendas que envolvem a bênção do amor por Afrodite são profundas e reflexivas. 

 


Eneida, poema épico de Virgílio, traz entre muitos trechos a versão romana da deusa como uma figura materna amorosa que busca guiar seu filho à Roma: “E Vênus, o amor de mãe brilhando em seus olhos, falou: 'Estes são os presentes que eu vos ofereço, querido filho, para ajudar-vos em vossa jornada.'"

 


Entre todas as características plurais da deusa e suas ramificações complexas em torno do romântico-sensual-erótico, a síntese de Afrodite na Antiguidade é o amor. Naturalmente, é coerente que sua figura seja complexa, carregada de simbolismos e com diversas interpretações sobre o que, ou quem, é o amor. Afinal, por mais abstrato que seja, o amor também é cheio de ramificações que se agregam em um único conceito. Para cultura da Grécia Antiga, o Amor como Afrodite se representou em uma das formas mais abrangentes das esferas da vida humana e divina, como uma personalidade central na compreensão do amor, da paixão e das relações interpessoais.



Comentário do Editor (ombudsman): sobre o ensaio de Bianca de Sousa, 'Amor com A maiúsculo', por GABRIEL MELLO


É bastante intuitivo enxergar a Deusa Afrodite como uma agente do Amor. Ela, claro, carrega consigo o Eros (Ἔρως), não apenas como seu 'amado filho', mas como um potente domínio pessoal. Refletir sobre Eros, e sobre a generalização atrelada à Deusa a partir disso, é uma tarefa bastante complexa e que, sobretudo, exige uma reflexão crítica e um deslocamento imaginário-histórico-ético-social. Falo isso porque os antigos Helenos sequer conheciam o Amor; tudo o que eles poderiam nutrir era o Eros. Os dois, por sua vez, são bastante distintos – sendo nossa atribuição de Amor muitas vezes incoerente à noção de Eros – e, ouso dizer, nenhum contempla suficientemente os múltiplos epítetos de Afrodite.


Desde um breve deslocamento, um, admito, nem um pouco superficial, quando pegamos a gênese da Deusa Afrodite, logo percebemos que o Eros sequer lhe fora atribuído. Estamos falando de uma Hélade (Grécia Antiga) bastante distante dos nossos olhares populares e romantizados; de uma que pouco cultuava a harmonia ou a perfeição, mas que, sobretudo, mostrava uma ânsia por triunfo. Nesse contexto, e levando em conta que Hélade inicialmente tratava-se de uma proeminente polis (πόλις) matriarcal, as mulheres não só representavam poder, como manifestavam suas vontades rigorosamente pela necessidade de tal. Com isso, não é estranho perceber que as primeiras divindades a surgirem, no que viria a ser a 'mitologia grega', tinham como base o feminino; e não mais estranho ainda é perceber que, na sua maioria, as divindades femininas representavam o poder, a guerra e o domínio.


Faço essa pontuação a fim de dizer que antes mesmo que Afrodite pudesse ser Anaduomene (Erguendo-se do mar) ou Kallisti (A mais bela), Afrodite era Androphonos (Matadora de homens), Basilis (Rainha), Summakhia (Aliada na guerra) e Tumborukhos (cavadora de túmulo).


A noção do Amor à Deusa, claro, permanece no nosso imaginário e não só mostra um certo domínio do masculino sobre o feminino – futuramente Deuses apareceriam para substituir os epítetos primários das Deusas –, mas como a transformação da própria imagem de Afrodite. Um ponto derradeiro e inegável é o nascimento de seu filho, Eros, como uma divindade menor e que, por vez, personificava algo muito próximo aos humanos: os sentimentos. Eros, emblemático na sua história com Psiquê, chega em Hélade como um alívio esclarecedor – o mito simbolizando através da catarse, da arte, o que por muitos era sentido, mas que por poucos era estudado. A história de 'amor' entre o Cupido e a 'mais bela de todas' trazia aos Helenos um alívio humano: a noção de que nosso Eros proclama uma natureza primordial, uma que rompe com a necessidade da boa-postura, do harmônico e do apolíneo.


E o curioso é que, mesmo com a posição firme de negação de Afrodite aos desejos do filho, isto é, o seu eros, como sentimento, à Psiquê, ainda assim fora atrelada a virtude à Deusa. Talvez mais pela relação sanguínea, Eros acabara na comitiva de Afrodite e ela, desde então, fora fadada a personificar algo que, embora esteja sobre seu domínio, pouco a contemplava.


Falamos de Afrodite como uma divindade que apropria-se do Eros, mas que pouco se esforça em sê-lo. Afrodite, por exemplo, sente o eros, infantil e rebelde, por Ares, mesmo prometida a Hefesto. Muito embora o Gamos (casamento) não tivesse relação direta ou proporcional com Eros (amor), ainda assim a Deusa, por diversas vezes, decide contemplar seu domínio, mas sempre negando sê-lo.

Nesse sentido, perceber que a noção popular de que Afrodite personifica o Amor pouco contempla sua história, seus epítetos e sua personalidade, acarretando, assim, em uma disforia programada sobre o entendimento da sua história, de como ela realmente era lida na antiguidade e o estranhamento com o seu culto. Afrodite pouco fora cultuada para ser o Eros, mas muito era chamada para atraí-lo, quase que como rebeldia. Vale lembrar que naquele momento, olhar para si, para os seus desejos, era Erótico (do Eros mesmo) e a partir disso surge a sintaxe do nome da Deusa. Estar em contato com o que é nosso, como os Helenos chamavam, Aretê (ἀρετή), rompia diretamente com o portar apolíneo e o ideal grego.


Assim, naquele contexto, e ainda hoje, estar em contato com Afrodite mostrava-se um ato de sensibilidade individual, um ato bastante político, mas que, com as ressignificações, e a apropriação cultural de sociedades hegemônicas, o caráter complexo da Deusa fora simplesmente reduzido à posição do Belo ou do Amor. É um esforço revisitar tantos contextos, e da mesma forma dessincronizá-los do senso comum ou da reprodução automática. Ainda assim, o olhar a Afrodite nos gera fascínio. Não poderíamos dizer que, talvez, hoje haja Amor na forma que olhamos para Ela?



Conteúdo presente na edição de DEZEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. A Revista Especular é um selo do GRUPO EDITORIAL LUMINAR

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