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As faces do feminino em “No Coração da Bruxa”

Nathália Bonfim










Existe uma temática recorrente na mitologia nórdica, que são mistérios


Desde o significado basilar que suas runas carregam (segredos), até no que diz respeito ao conceito de destino dentro da cosmogonia escandinava, um segredo especialmente guardado pelas nornas, que é dificilmente revelado a qualquer um, até mesmo para Odin, o pai dos deuses.


 E é sob esta perspectiva que Genevieve Gornichec (1990-) nos põe diante do seguinte questionamento: até onde pode ir um deus, em sua violência e sede por poder, quando se depara com uma figura feminina irreverente em sua essência?


Angrboda é uma giganta (lembrando aqui que, dentro da mitologia nórdica, gigantes não são, literalmente, pessoas de grande estatura) que possui conhecimento sobre uma forma de magia que permite ao usuário transitar, em termos astrológicos, entre os planos e mundos existentes, podendo caminhar pelas linhas do destino e compreender o futuro: o Seiðr.  A bruxa era muito bem vista por Odin pelo seu conhecimento, oferecendo, inclusive, seu conhecimento em runas em troca dos ensinamentos do seiðr. Porém, Angrboda um dia se depara com um lugar muito escuro e sombrio dentro de suas viagens astrais e tem a intuição de que o próprio Odin não deveria acessá-lo, visto a ambição latente do deus pelo conhecimento e controle dos acontecimentos.


Ele virou os Aesir contra a bruxa e a chamou de Gullveig, a ‘cobiçadora de ouro’. Eles a transpassaram com lanças e queimaram três vezes, e três vezes ela renasceu - pois era muito antiga e muito mais difícil de matar do que parecia. A cada vez que ela era queimada, Odin tentava forçá-la a descer até o lugar escuro para encontrar o que ele desejava saber, e toda vez a bruxa resistia. (...) Na terceira vez em que renasceu, Gullveig fugiu, embora tenha deixado algo para trás: o seu coração transpassado por uma lança, ainda fumegando na pira. (GORNICHEC, p. 12)


  Esse é o tratamento dado para aquela que se recusou a se curvar diante do desejo do deus dos céus. Entretanto, a pior punição para a bruxa, talvez, tenha sido o exílio forçado e o anonimato sobre o qual ela teve de se submeter. A partir de agora, ela deixa de ser Gullveig e passa a ser Angrboda, a proclamadora de tristezas, vivendo seus dias se escondendo da sombra e dos olhos do deus Odin e tentando proteger, junto consigo, o futuro terrível o qual havia enxergado no escuro de suas viagens astrais. 


O resto é spoiler, portanto não pretendo contar e estragar a experiência da sua leitura!

Bem, e quanto a todo o prestígio e legado que a bruxa havia deixado em Asgard, todo o conhecimento do seiðr e de suas feitiçarias proeminentes? Aí é que vem a maior crueldade, ao meu ver. O legado da bruxa é atribuído então a outra pessoa: Freya.


Quando eu mesma li o livro, logo de início tive uma sensação de estranhamento, pois a história mitológica que eu sempre escutei era realmente Freya quem dominava a arte da magia, e especialmente a do seiðr, tendo ensinado-a nobremente para o deus caolho. Freya é a deusa da beleza, amor, fertilidade, guerras, mas também, como senhora da magia e feitiçaria, sendo, em uma parte considerável de fontes, a responsável pelo ensino do seiðr a Odin. Particularmente, nunca tinha ouvido falar de Gullveig antes de ler o livro de Gornichec.



É bastante comum que, se tratando de temas mitológicos, existam confusões e várias versões de uma mesma história. No caso da mitologia nórdica, a maior parte das histórias eram repassadas oralmente, visto que os nórdicos não eram um povo que mantinham registros escritos. As principais fontes mitológicas escritas, os Eddas, datam já do século XIII, período no qual o processo de cristianização nos países nórdicos já era bem estabelecido, o que significa que muito das narrativas originais possam ter sido escritas e pensadas sob uma ótica moral cristã, já não condizendo plenamente com a originalidade dos mitos e como eles seriam repassados através da tradição oral.


Sendo assim, é bastante possível que Gullveig e Freya tenham sido apenas a mesma face de uma deusa única, uma rebelde e outra subverniente à Odin, que após receber seu castigo de fogo, voltou a servi-lo obedientemente, ou que realmente tenham sido personagens diferentes desde o início, nunca saberemos completamente. 


A questão é que a autora aproveitou bem este espaço “incompleto” nos registros e fontes para humanizar a bruxa, que muito pouco é citada ou sequer lembrada, em detrimento de sua substituta, Freya. Afinal, Gullveig era a bruxa, aquela que trabalhava por ouro, e mantinha seu conhecimento para si e somente para aquelas quem ela julgava dignos e responsáveis de recebê-lo, enquanto Freya é a senhora, aquela a qual é associada a prosperidade, a fertilidade, e vários outros domínios os quais podem ser considerados de prestígio, além de ser a professora e serva mágica de Odin. Há aqui uma sutileza na comparação entre ambas.


Do caminho de Gullveig até se tornar Angrboda, a proclamadora de tristezas, vemos como a irreverência, o exílio e a solidão moldam a história de uma mulher que poderia ser a deusa feiticeira, mas acabou por ser sinônimo de caos e destruição, e que, na verdade, é aí em que reside as suas qualidades: Angrboda, em “No Coração da Bruxa”, é sinônimo de coragem, conhecimento, astúcia e magia. 


Espero, cada vez mais, ver mais Angrbodas como protagonistas nas fantasias. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GORNICHEC, G. No Coração da Bruxa. Darkside Books, Rio de Janeiro, 2022.

QUINTANA, T. Runas, Galdr e Seidr: um breve estudo sobre a representação literária das práticas de magia da cultura nórdica medieval. Revista Medievalis Vol. 1 (1), 2012.

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4 Comments


Outro texto incrível, Nathália!

Levantar o papel das mulheres na mitologia e ao que são submetidas lembra-me do 'O Herói de Mil Faces', de Joseph Campbell. Para além do Mito do Herói 'hollywoodificado', ele retratou as provações, principalmente o estupro, no contexto da iniciação feminina no caminho do monomito.

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Aaaah obrigada Volnei! vou te falar que, particularmente, não curto muito associar as jornadas femininas em histórias com o herói de mil faces porque ainda assim a ótica de uma narrativa feminina é muito diferente de quando pensada e narrada por um homem, e de quando isso é feito por uma mulher. As estruturas são muito diferentes!

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Ótimo texto! Bacana você levantar a Edda nesse contexto do livro. Realmente muito se perdeu da mitologia nórdica, e a nossa fonte principal – o Edda – tem distorções absurdas... como a ideia de que, ao fim do Ragnarok Jesus Cristo apareceria para "recomeçar" o mundo.

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Obrigada Gabrieeel! Nossa, eu confesso que eu não sabia dessa de Jesus Cristo aparecer nas eddas kkkkk apesar de Baldur e ele terem muitas semelhanças narrativas, e que isso tenha a ver com a cristianização da Escandinávia, eu não sabia mesmo que ele era citado nessas escrituras.

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