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As fitas perdidas do "found footage"

Atualizado: 2 de jun.

Matheus Maciel, autor e colunista










Talvez de 1980 para cá, nós tenhamos, correndo por baixo, uma das propostas mais ricas e interessantes dentro do gênero do horror: o estilo found footage, que pode ser traduzido literalmente como “filmagem encontrada”.


Se eu disse 1980, é porque ficou amplamente aceito que o subgênero (ou estilo) found footage no terror foi inaugurado pelo infame longa-metragem italiano Holocausto Canibal, dirigido por Ruggero Deodato. O filme nos mostra um grupo de documentaristas que vão à floresta amazônica para filmar, em um experimento tanto cinematográfico quanto antropológico, as populações autóctones que optam por um estilo de vida privado e distante dos centros urbanos. No filme, o horror reside no fato de que essas populações tratadas como objeto de estudo dos cineastas se valem de uma cultura antropofágica agressiva - “canibais violentos”, pela perspectiva do filme - que matam os protagonistas e os torturam para sua saciedade. O que parece uma premissa tangente aos mais genéricos de terror, encontra seu diferencial no que acabou se tornando um estilo uma marca: a câmera é subjetiva, operada pelos próprios personagens e que constrói uma narrativa a partir dos momentos documentados. O fato é a narração em seus fragmentos.


A própria ideia de fato, aliás, é discutida só de existir o subgênero. O que acontece em frente da câmera é fruto do olhar do cinegrafista para a realidade e sua mutação em horror e, consequentemente, tragédia. A realidade em si é apenas um recorte, mutilada e remontada como um quebra-cabeça que conduz à história do que aconteceu em um lugar ou com algumas pessoas. O ocorrido tem, inicialmente, o tom de uma advertência ou um pedido silencioso de que não se vá naquele lugar - a floresta amazônica, em Holocausto Canibal - ou que evite tais pessoas ou objetos. A semiótica disso se inverte em um desejo potente de curiosidade, mesmo que o olhar esteja in loco, ou seja, seja metanarrativo. Em V/H/S (2012) as fitas são encontradas por outros personagens (que também estão fazendo filmagens), sendo que a cada fita assistida, um deles desaparece. Uma maldição parece pairar em torno das gravações encontradas, e isso potencializa a imersão e interesse na obra.


A principal influência para o found footage enquanto estilo veio da literatura. Romances epistolares, principalmente os góticos e/ou com elementos marcantes de terror alinham a narrativa e organização e seleção dos fatos contados por meio da subjetividade do personagem, ou seja, de seu olhar para os recortes da realidade, carregando seus temores pessoais, preconceitos e perspectivas sobre as situações. Drácula (1897), escrito pelo irlandês Bram Stoker (1878 - 1912), é contado por meio de cartas, em que cada passagem fornece uma peça adicional para que o leitor monte esse quebra-cabeça que é o Conde Drácula. O labirinto de nossa psique é xilogravada em um desenho sutil que combina os elementos fornecidos pelo livro e complementados por nossa própria cognição. Assim é o found footage, sendo que nossa interação com as câmeras é o mais próxima possível, em primeira pessoa, embora a mídia audiovisual se concentre no que já tratamos acima por “olhar” do narrador. Não necessariamente sabemos seus pensamentos, mas temos acesso o que e como a pessoa que opera a câmera olha para o mundo.


Em A Bruxa de Blair (1999), temos o título que ajudou o subgênero a explodir na mídia e no gosto popular, por meio tanto de uma produção dedicada quanto uma inusitada campanha de divulgação, que preocupou a todos ao dizer que o filme não era uma ficção, mas um documento perturbador de jovens que desapareceram em Burkittsville, nos Estados Unidos. O filme é o mais clássico exemplo do terror found footage, por reunir e consolidar os elementos que colocaram o estilo no mapa: a câmera pessoal trêmula, uma dúvida crescente do medo e a vigilância do horror e elementos que o conectem com a realidade, emprestando um toque de veracidade que pode causar náuseas e paranoia nos espectadores. 


O recurso realista tem forte eco nas obras do escritor norte americano H.P. Lovecraft (1890 - 1937), que mostrava uma preferência por personagens acadêmicos ou estudiosos crônicos. Principalmente nos acadêmicos, temos histórias que infiltraram o “horror cósmico” típico do autor em estruturas de relatório em tradicionais linguagens científicas ou um pouco mais formais apenas. A crescente de horror se dá com o “enlouquecimento” dos personagens e profundas e assustadores alterações na narração até o cume de um horror iminente e inevitável.


Por fim, trago uma variedade ainda mais inquietante do found footage que vem em tirar o espectador de seu lugar de conforto de observador em primeira pessoa. O filme Atividade Paranormal (2009) tira a câmera da mão dos personagens e a coloca longe, quase sempre em um plano aberto. No longa,  um casal é atormentado por problemas no sono, então decidem filmar o quarto durante a noite para verem o que anda acontecendo. A descoberta vem cedo: alguma coisa invisível, no melhor estilo poltergeist, interage com objetos do ambiente caseiro e mesmo com os personagens, derrubando panelas e mexendo em cobertores e no cabelo da protagonista. O sentimento evocado é o de total impotência ante o que está acontecendo, muitas vezes bem devagar. A tensão chega a ser quase sólida às vezes, e o filme nos tortura com uma tensão que não deve em nada para os filmes do Hitchcock. 


O subgênero ainda é um tanto relegado, mesmo dentro do circuito do terror, sendo predileto principalmente dos catálogos já bastante recheados dos streamings. O que acaba sendo uma deliciosa metalinguagem descobrir e tirar o pó de um desses filmes quando se prospecta muito em um catálogo de filmes. 

Só advirto que tenham cuidado com os arredores e não desobedeçam às etiquetas que dizem “não assista”. 

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