Na virada do século XX, nos Estados Unidos, o fisiculturismo ganhou notoriedade retomando o ideal grego de masculinidade a ser performada, inspirando Joe Shuster na representação física de sua criação futura: o Superman. Como eu trouxe na coluna sobre a cultura pop japonesa, a ocupação estadunidense em território japonês foi decisiva para o estabelecimento dos mangás, baseados nas comics ocidentais, para uma nova forma de contar histórias através da arte. E, assim como ocorre no lado de cá do globo, no Japão, as manifestações sociais constroem as narrativas dos mangás que, apesar de trazer heróis, monstros e todo o tipo de alegoria, refletem diretamente a filosofia de seu povo e a influência cultural global.
Como forma de ordenar a sociedade, homens e mulheres sofrem uma divisão estabelecida desde o nascimento, através do sexo biológico, e são condicionados a se comportar do modo mais distinto possível. Essa normatização acarreta em um sistema binário de gênero, onde um padrão de masculinidade é estabelecido e deve ser constantemente legitimado, obrigando os homens a rejeitar tudo o que não faça parte da “masculinidade hegemônica”. Para isso, os homens devem ser autossuficientes, demonstrar força, poder, racionalidade, dominância, liderança e controle sobre suas próprias emoções, além de serem heterossexuais, sexualmente ativos e propensos a correr riscos, como apontam João Victor Gomes de Oliveira e Regina Célia Escudero em A masculinidade em questão: a promoção de um debate na esfera pública, publicado em 2019.
É a influência dos super-heróis das comics, a narrativa pós-apocalíptica de Mad Max (1979) e o sucesso das artes marciais de Bruce Lee que unem Tetsuo Hara e Buronson em 1983 na construção do mangá Hokuto No Ken, ou Fist of the North Star, a história que segue a jornada de Kenshiro, um homem jovem, alto e forte, utilizando uma técnica secreta de luta (que utiliza pontos vitais do corpo humano) para vencer centenas de inimigos em um mundo desértico, em nome de uma vingança.
Publicado na Weekly Shonen Jump, Hokuto no Ken é considerado, ao lado de Dragon Ball, um dos precursores para a modernização dos mangás shounen. É aqui que surgem os “animes de lutinha”. Porém, mais do que isso, a imagem imponente correspondendo a todos os ideais de masculinidade, físicos e comportamentais, de Kenshiro também inspiraram obras antológicas e importantes até hoje na cultura pop japonesa: Berserk e Jojo’s Bizarre Adventure.
Enquanto o Guts de Kentaro Miura aprofunda os tormentos de Kenshiro e seu mundo assolado pela perversidade, virando influência no dark fantasy, o Jojo de Hirohiko Araki ganha outro tom, assumindo inicialmente o mistério e o drama, até a fantasia e a estética única estabelecida pelo mangaká.
Ambas as obras saídas do final da década de 80 exibem seus protagonistas com um porte físico exagerado e um estilo de arte muito característico: detalhado, cheio de sombras, hachuras e personagens emblemáticos. Enquanto, como fã de ambas as obras, eu classifico Berserk como uma experiência filosófica profunda, Jojo’s Bizarre Adventure é uma experiência estética maravilhosa; ainda que as surpresas no enredo e a criatividade de Hirohiko Araki também sejam tão boas quanto.
Separado em partes que seguem as aventuras bizarras (sim!) de cada descendente da família Joestar em sua própria geração, Jojo’s inicia sua jornada nos mangás em 1987, com Jonathan Joestar (Jo Jo), um gentleman inglês em meados de 1860, enfrentando seu irmão adotivo, Dio Brando, que se torna um vampiro e jura destruir toda a linhagem Joestar por ambição e despeito. Para enfrentar seu inimigo, Jonathan aprende uma técnica de respiração chamada de Hamon e parte em uma aventura sem pé nem cabeça, mas que garante muita diversão, poses únicas e o meme “to be continued” que tornaram a série animada (iniciada em 2012) tão famosa na internet. Além disso, as referências musicais citadas por toda a saga e as influências de catálogos fotográficos de moda tornaram a história de Hirohiko Araki uma obra singular.
Tanto pela longevidade da publicação de sua série (na shonen jump desde 1987 até 2004, passando a ser lançada pela ultra jump de 2004 até hoje), quanto pela versatilidade de seus personagens, da linhagem da família Joestar através do tempo e das diversas referências imagéticas de Araki (cinema, moda, música), Jojo’s Bizarre Adventure (por ter “bizarro” no nome) permitiu ao mangaká explorar todas as possibilidades à sua disposição, no que se refere à enredo e também à estética, pois, com o tempo, os protagonistas que exibiam um físico exageradamente musculoso e contrastavam a natureza de sua masculinidade com comportamentos distintos a cada personalidade, passaram a ter músculos menos evidentes, penteados mais exagerados e uma noção de moda cada vez mais distante do senso hegemônico do que é estabelecido como “masculino”.
Do gentil Jonathan, do atrevido Joseph e do antissocial Jotaro, ao solícito Josuke, o idealista Giorno e a corajosa Jolyne (que como mulher, liberta a série do padrão comum ao shounen). Os “Jojos” de Hirohiko Araki atravessam a masculinidade sólida inspirada por Kenshiro para manifestar suas emoções e personalidades através de suas técnicas de luta, que mudam da respiração Hamon para a projeção espiritual dos Stands, iniciadas como uma manifestação de habilidade física até se tornarem habilidades intelectuais e estratégicas. Os vilões também acompanham a evolução dessa imagem de masculinidade: do vampiro musculoso Dio Brando, dos “Homens do Pilar”, que denotam fisiculturistas, ao serial killer inspirado na aparência de David Bowie, o chefe de máfia com dupla personalidade e aparência andrógina até um padre da Flórida com filosofias restritas.
Não é à toa que uma série de vídeos no Youtube do canal “Purin”, nomeada Homens fortes em poses gulosas, onde ele narra todas as aventuras apresentadas nos mangás e animes de Jojo, passa a se chamar Homens magros em poses gulosas. Aos poucos, Araki desconstruiu o padrão masculino que o inspirava, primeiro, colocando aquelas figuras halterofilistas em poses estáticas exageradas, dramáticas, avessas ao comportamento esperado do “homem ideal”.
Depois, transformando seus protagonistas em figuras mais esguias, andróginas e exageradamente belas. No entanto, a estranheza inicial dá o tom do humor e da personalidade da história, se encaixando à “bizarrice” e, logo, essa linguagem deixa de ser rejeitada pelos leitores e espectadores e se torna um traço marcante, já que a aventura permanece e os personagens não deixam de ser fortes, inteligentes e carismáticos por não performarem mais o que é normatizado.
Um corpo que desvia do referencial imposto é excluído e satirizado pela mídia e pela sociedade, é o que afirma Adriano Beiras et al. em Gênero e super-heróis: o traçado do corpo masculino pela norma, de 2007. As poses excêntricas de Jojo se tornaram um meme, uma piada entre a comunidade de fãs, mas, com o tempo, sua autenticidade venceu o preconceito e o termo “jojofag”, com uma conotação pejorativa, se tornou o nome oficial do fandom, que não tem nenhuma vergonha em demonstrar seu amor pela obra, pelos personagens e em “espalhar a palavra de Jojo” para mais pessoas.
Os personagens que seguem o novo ciclo de publicações de Jojo’s Bizarre Adventure continuam servindo como experiência e diversão à Hirohiko Araki. Visitando diferentes linhas do tempo, hoje, Jojo é uma aventura muito mais profunda do que era no começo, mantendo sua identidade singular e arrastando mais fãs das adaptações bem sucedidas realizadas pela David Production.
Se existe um legado irrevogável da obra de Araki, este é, sem dúvidas, o quanto homens podem expressar sua masculinidade de forma legítima, expressando seus sentimentos e sonhos, de diferentes maneiras e com diferentes corpos.
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