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Casca: a complexidade da mulher para além de uma vítima












Kyasuka (em japonês キャスカ), conhecida no ocidente como Casca, é uma das personagens principais do mangá Berserk, um clássico do dark fantasy mundial, do autor Kentaro Miura. Apresentada aos leitores como a única mulher guerreira de um grande bando de mercenários, a personagem, nas palavras do próprio autor, seria um modelo “ideal” de mulher: forte, decidida, sem perder sua delicadeza e feminilidade.


Além disso, os traços físicos de Casca como uma mulher de pele escura, cabelos marrons e olhos escuros completam a percepção de Miura do que seria a “mulher ideal” em seu universo. Sua “idealização” condiz bastante com o ambiente em que ela vive, o que torna a personagem e sua personalidade complexas: ao mesmo tempo em que Casca é citada como um exemplo de força, superação e inteligência, ela é constantemente lembrada de seu papel “subalterno” de mulher; não importando suas habilidades.


Casca e seus atributos físicos e emocionais seriam a representação da “mulher ideal” em Berserk
Casca e seus atributos físicos e emocionais seriam a representação da “mulher ideal” em Berserk

Quando Guts, o protagonista da obra, se torna parte do bando, acompanhamos Casca, que até então era uma guerreira tão mortal quanto qualquer outro, ser submetida por seu líder a se deitar com Guts para aquecê-lo enquanto ele está inconsciente por causa de um ferimento. E ela ainda ouve que o papel de aquecer um homem cabe à ela, afinal, ela é uma mulher. Outras situações pressionam a personagem de forma sufocante (principalmente se você é uma mulher lendo o mangá), como o fato de sua menstruação interferir nas suas habilidades no campo de batalha ou como ela se torna um alvo constante dos soldados, que sempre reforçam que, mais do que um inimigo, ela é um objeto.


É nesse insulto contínuo que Casca encontra forças para reagir e lutar. Sua resiliência impressiona Guts, que passa a admirá-la à medida que a conhece e percebe a complexidade de sua natureza quanto mulher no meio do bando. Quando precisa estar presente em um baile ao lado de seus companheiros, ela não se sente adequada com os vestidos espalhafatosos, mas, ao mesmo tempo, percebe que há algo reconfortante em reconhecer sua própria feminilidade através daquela vestimenta. Já em outro momento, quando é confundida com um soldado por uma princesa, Casca parece incomodada, o que rompe a ideia de que ela queira se misturar entre os parceiros de bando. Ela responde a Guts, quando, em um momento íntimo, ele observa as cicatrizes que ela tem por todo o corpo:


“Elas [suas cicatrizes] são como medalhas para os mercenários, sabe? Mas ainda assim eu sou… eu sou… uma mulher…”

A autopercepção de Casca como um membro do bando é essencial para o evento mais importante da obra: o eclipse. Em um ritual macabro em que todos são sacrificados como alimentos para demônios, Casca, como a única mulher, passa por todos os horrores que o cruel mundo de Berserk parece reservar para mulheres. Seu corpo deixa de pertencer a ela, para que se torne objeto de uma vingança entre Guts e seu inimigo, Griffith, alguém em quem Casca já havia confiado profundamente.


As sequelas desse momento tão violento a perseguem quando apenas ela e Guts conseguem sair vivos do grande sacrifício. Casca tem sua sanidade afetada e regride mentalmente, agindo como uma criança, incapaz de falar ou reconhecer as pessoas. A guerreira que ela já foi está aprisionada para sempre em sua mente que agora vaga à distância de tudo, tentando protegê-la de qualquer chance de regressar às memórias daquele momento aterrorizante. A partir desse momento, Casca assume a “identidade” de Elaine, uma representação de sua sombra, de seu lado mais frágil e vulnerável.


Miura já confessou em entrevistas que sua ideia de manter a personagem viva, mas traumatizada, era uma forma de alimentar continuamente a vingança de seu protagonista. Sempre que Guts a visse daquela forma, lembrar-se-ia de tudo o que passou e do quanto havia “falhado” com a pessoa que amava. No entanto, com o tempo, o autor voltou atrás e decidiu criar uma forma não só de trazer a guerreira Casca de volta, mas de reparar as falhas que ele cometeu contra a personagem quando desenhou e publicou os horrores do eclipse.


Quando surge a possibilidade de recuperar a personalidade de Casca, duas mulheres se tornam suas companheiras em uma jornada dentro de sua alma: Farnese e Schierke. Apesar de a justificativa se basear nelas serem aprendizes de magia, a escolha do autor em retirar um personagem tão importante quanto Guts desse momento para criar uma atmosfera de acolhimento e segurança com duas mulheres a quem Casca, quanto Elaine, confiava, foi muito sensível.


Mergulhando pelos traumas de Casca, ambas recolhem fragmentos de sua personalidade que vai remontando uma bonequinha em pedaços carregada dentro de um caixão. Ali, através das memórias da personagem, nós leitores percebemos o sofrimento inenarrável pelo qual Casca passou, ao ponto de sentir todo seu espírito se quebrar. É a partir desse ponto de vista, também, que qualquer questionamento tolo de uma parte dos leitores sobre “ela ter gostado” do que passou nas mãos de seus algozes é encerrado.


Com uma espera de mais de 20 anos, desde a publicação do eclipse, somos reapresentados à Casca. Seu reencontro com Guts é adiado por causa do trauma que, agora, faz parte de sua consciência plena. Ela agora terá de encarar os horrores de sua memória, lidar com o luto da perda de seus companheiros e conhecer o novo Guts, que ela ainda ama, mas que também possui feridas tão profundas quanto as dela.


Como uma fã de Berserk, me lembro de acompanhar cada lançamento de capítulo novo com outros leitores e compartilhar com eles o desejo de que a Casca finalmente conseguisse lutar com suas próprias mãos, como a guerreira que sempre foi. Ao mesmo tempo, havia um debate sobre seu papel como vítima de violência e o quanto ela foi condicionada a isso pela própria comunidade de leitores. 


Casca, em si, é uma subversão do estereótipo da mulher negra forte, uma visão preconceituosa, reforçada na cultura popular pela ideia de que mulheres negras resistem mais à dor e têm mais força de vontade para enfrentar problemas de frente. Apesar de ser a guerreira que é, toda a jornada de Casca aprisionada em sua própria mente pelo trauma, fragilizada e vulnerável, rompe com as imposições dessa imagem social estabelecida. A gravidade de seu estado psíquico dá a ela permissão para ser fraca, precisar de ajuda e ser acolhida.


Entretanto, uma personagem tão importante para a trama de Berserk quanto Casca, não merecia ser relegada ao papel de vítima eterna. Este é outro padrão em que se encaixam as mulheres coadjuvantes, no geral, na ficção especulativa. Mais comum às personagens de pele clara, o conceito de “mulheres na geladeira”, nomeado pela quadrinista Gail Simone na década de 90, alimenta uma visão misógina onde mulheres só existem na história para sofrer violências ou ser subjugadas, servindo de motivo para que o arco narrativo de um protagonista homem tenha início.


  Mulheres na geladeira é um termo cunhado na década de 90 pela quadrinista Gail Simone ao observar nos quadrinhos o padrão de personagens femininas que eram mortas, agredidas, violentadas ou que perdiam seus poderes, apenas para desenvolver o arco dos protagonistas masculinos. A “geladeira” se refere diretamente à história 54 do Lanterna Verde, onde sua namorada é morta e colocada na geladeira pelo vilão, para que, assim, o arco narrativo do herói tivesse início.


Casca é mais do que isso. Miura admite, ao se redimir durante a saga de Berserk, transformando-a em um novo símbolo de redenção para Guts, ao invés de afundá-lo na sede por vingança. É justo que, agora consciente, Casca precise de tempo para se recuperar de seus traumas. No entanto, fica claro que seu retorno tem uma razão particular. Ela deixa de ser o agente motivador do protagonista e passa a ter sua própria jornada de enfrentamento e recuperação.


Casca representa uma ruptura de dois estereótipos estabelecidos e opostos na ficção, o que é extraordinário. O trauma é parte dela, mas não quem ela é completamente. Ela ainda é a guerreira do bando, a amiga, a companheira, a mulher amada. Também ainda é vulnerável, instável e precisa de ajuda, como qualquer personagem ou pessoa. Durante a evolução de Guts, já havíamos percebido como sua vingança se transformou em uma busca para manter quem ele ama em segurança. Seu ódio foi substituído pelo amor. Já para Casca, sua evolução na história se converte do medo, da submissão e do trauma, para a resiliência, a ternura e a justiça.


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