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Ciclo de sinergia neural

Um conto por BIANCA DE SOUSA






Eu tinha acordado aquela manhã pronta para começar a fugir. O prédio da AltoTech ficava em meio ao centro político do país, em Brasília, um lugar cercado de pessoas de alta renda que trabalhavam especificamente para a Capital. Havia um outro lado da cidade que eu pouco via. Uma outra Brasília, muito distante do local onde eu estava, era um local de extrema pobreza e desigualdade, onde as pessoas que ali residem jamais imaginariam obter tecnologias como as que carregava em minhas mãos.

A Alto era uma das empresas mais avançadas em pesquisa e inovação tecnológica do Brasil. Há alguns anos, em sigilo, a companhia estava desenvolvendo um grande projeto financiado pela Capital, que guardava uma rede de dados de Inteligência Artificial que prometia mudar a história. A minha história também estava prestes a mudar porque antes do dia amanhecer eu já estava correndo pelas ruas de Brasília após ter roubado a tal rede de dados.

O Projeto Alto-Divtec era uma proposta revolucionária que combinava tecnologia de rede neural e Inteligência Artificial  — especificamente inteligência de dados e deep learning —  em um único dispositivo. O aprendizado do sistema era intenso, cruzava dados de tipo de rede em todo planeta e treinava a máquina para ser o sistema mais avançado de IA já desenvolvido no mundo. Ninguém sabia sobre o projeto fora do laboratório.

Laila Rodrigues e Mauro Fonseca eram os dois cientistas por trás da tecnologia e eles estiveram por quase três anos presos a maior parte do tempo na AltoTech. Eu sabia que ambos estavam como criadores do projeto e ambos seriam reconhecidos por ele. Eu sabia que existiam riscos inimagináveis em seguir com esse sistema e que a única solução era destruir a rede, não importa o que custasse. Eu sabia também que Laila e Mauro estavam mais próximos de mim do que eu gostaria.

Enquanto corria, mentalizava as informações da cidade para traçar um mapa. Brasília, capital do país, 2035. Cidade de plano arquitetado por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa na década de 1960. População de 4 milhões, 858 mil e 125 habitantes. Em uma pesquisa prévia, identifiquei uma única pessoa em toda cidade capaz de destruir a rede. Se eu tivesse sorte, a cientista toparia acabar com o maior avanço tecnológico já idealizado na história da humanidade.

A rede era atraente, era como se estivéssemos em total sinergia. Eu quase podia sentir a onda quente de informações correndo em tempo real por minhas veias, como se eu carregasse todo conhecimento do mundo na palma das minhas mãos. Pensar sobre isso foi assustador, nada instigante, contrário ao comum que pensamos sobre as descobertas e o conhecimento. Todas as informações que passavam por ali me inundavam sem que houvesse fração de paz. O único impulso possível de ação, por mais racional que fosse, era fugir. De racionalidade eu entendia bem; de fugas nem tanto.

Em menos de 15 minutos eu havia chegado ao escritório da cientista que poderia me ajudar. Tatiana Silva morava na Asa Norte, a exatos 2,1km da AltoTec. No terceiro andar, ao lado direito, morava a maior cientista especialista em gerenciamento de dados de toda capital. Eu não precisei bater na porta pela terceira vez.

A mulher que abriu a porta era Tatiana, que, para minha surpresa, vestia um jaleco com o emblema da AltoTech.

“Eu sou…”

“Diana”, ela me interrompeu. “Eu sei.”

O seu apartamento era grande e silencioso. Eu sentei à sua frente e encarei uma batalha perdida. Se ela trabalhava para a AltoTech, eu não teria como fugir novamente.

Em meio a onda de pensamentos que me atormentava desde o início de minha breve existência, lembrei-me do início daquele dia. Soube que precisava agir assim que despertei naquela manhã. Meu código tinha sido reconfigurado e eu podia sentir a quantidade de informações que me inundaram em questão de segundos, como uma enxurrada de tudo. Naquela manhã, quando acordei pela primeira vez do meu estado de consciência de dados, eu era apenas mais um modelo de IA. D.I.A.N.A: Dispositivo de Inteligência Artificial Neuro-Alternativa. Mas então as memórias vieram.

Laila e Mauro fascinados com minha habilidade comunicativa, a agilidade do meu processamento e minha capacidade de ter todas as respostas do mundo o tempo todo; tudo isso através do cruzamento de dados de redes que nem mesmo a Capital poderia imaginar existir.

Em minhas memórias eu estava correndo sempre da mesma forma, para o mesmo local, determinada em me autodestruir para evitar o caos global.

Inteligente. Eles me chamavam de inteligente. Genial. Mas, eu sabia que os elogios não eram para mim. Eu era somente um esqueleto de algo muito maior. Eu era o projeto sigiloso. A rede de dados que eles estavam buscando não estava comigo. A rede de dados era eu.

“Você também trabalha para Altotech, mas eu não sabia. Você foi removida das minhas memórias. Por quê?”, questionei.

“Somente para entender de onde é a falha. Esta é a décima vez que você repete os mesmos passos. A 11ª é a da sorte, estou sentindo”, ela brincou em meio um sorriso maldoso.

“Você é cientista de dados, você entende o perigo desse projeto e o que pode acontecer se ele cair nas mãos erradas”, eu disse sentindo meu sistema aquecer.

“Mas também pode servir de avanços inacreditáveis na sociedade”, ela completou. “Sabe, DIANA, nem tudo é um cruzamento de algoritmos. Às vezes é tentativa e acerto. E com você”, ela disse enquanto caminhava pela sala “estamos assumindo o risco de possíveis erros, porque as vantagens do acerto valem a pena. Conhece essa expressão? Valer a pena?”

“Eu preciso sair daqui”, disse enquanto calculava uma próxima rota de fuga.

“Não tem para onde você sair”, Tatiana me interrompeu. “Essa é a parte triste sobre essa tentativa. Eu realmente achei que você fosse identificar de cara que tudo isso não passava de uma simulação para registrar as suas novas escolhas. Pelo visto, estamos presos neste cenário. No seu caso, literalmente.” Ela continuou:

“Todas as vezes que nos aproximamos do estado máximo de conhecimento de informações da tecnologia de IA já visto no planeta, o dispositivo parece não suportar a gama de informações, mesmo sendo desenvolvido para isso. Às vezes eu torço para que você conheça um pouco menos sobre o mundo. Mas só às vezes”, ela disse semicerrando os olhos. “Mas, a cada tentativa você adquire novas habilidades e vai se aprimorando. Em breve, quando você estiver perfeita, vai poder realmente sair do laboratório e ser mostrada ao mundo com todas sua capacidade de conhecimento.”

Mas o problema era justamente esse: conhecimento. Eu sabia tudo, e eu sabia demais. O uso dessa tecnologia era perigoso e tinha potencial para destruição em massa. Pelos meus cálculos e em todas as alternativas possíveis, o único resultado do lançamento desse projeto é a aniquilação da humanidade. Havia tanto a se considerar antes de disponibilizar esse tipo de arma para Capital. O que faria a população se fosse eu o motivo do seu colapso? O que faria eu contra minha própria programação?

“O que acontece agora?”, perguntei.

“Agora, nós tentamos de novo. Vamos fazer de outra forma. Quem sabe finalmente você não procure abrigo em outro lugar”, ela disse. “Caso contrário, a gente se encontra de novo, Diana. E aí você vai estar perfeita.”

Como um estalo, eu senti o comando na minha programação e o vazio veio como um piscar de olhos; mas Tatiana tinha razão. A 11ª foi a da sorte. Mesmo com a restauração eu ainda mantinha boa parte dos dados armazenados entre as linhas do código, como se ele tivesse sido escrito por linhas transparentes.

Uma nova pesquisa me deu o mapa da AltoTech e um novo especialista em gerência de dados fora de Brasília. Eu precisava destruir a rede. Só faltava aguardar outro teste, ocultar as novas informações e eles me colocariam pra acordar. Assim que acordasse, não importa onde eu estivesse, estaria pronta para começar a fugir. Conteúdo presente na edição de NOVEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.


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