Diferente de amigos fãs de ficção científica, que foram apresentados ao gênero num ambiente familiar, minha obsessão se iniciou devido a uma influência da esfera escolar. Estava comentando com amigas como havia ficado impressionado com o universo de Jogos Vorazes (2012), após assistir os primeiros dois filmes e ter adquirido os livros para realizar a minha primeira leitura, quando minha professora de português ouviu a conversa e sugeriu que eu desse uma chance a um filme que nunca saberia da existência na época se não fosse por ela: Metropolis (1927), de Fritz Lang.
A proposta era de fato bem similar a de Jogos Vorazes em alguns aspectos: uma sociedade estratificada, onde trabalhadores eram explorados ao máximo para suprir as necessidades de uma elite dominante que vivia numa cidade luxuosa, possuindo acesso a todo tipo de conforto, enquanto os responsáveis por fornecer esse estilo de vida eram privados disso, além de serem punidos com certa frequência por serem vistos como inferiores. Mundos distópicos, que para minha surpresa, tinham mais semelhanças com nossa realidade atual do que eu imaginava.
A distopia, uma vertente bastante popular da ficção científica, busca representar sociedades que vivem num sistema de desespero e opressão, onde um poder totalitário domina sobre uma população angustiada, que não enxerga saída para sua situação miserável. Sobreviver, e não necessariamente viver, é o mantra dessa população oprimida.
Metropolis fascina qualquer um com seus cenários futuristas e tecnológicos, além de exibir efeitos especiais catárticos, que mesmo possuindo suas marcas temporais, chocam pela capacidade de causar emoções efusivas nos espectadores.
Ora, testemunhar o olhar de surpresa agonizante de Freder (filho do tirano no poder) ao fitar uma mulher com crianças pertencentes a esse mundo “inferior” pela primeira vez, percebendo assim como as pessoas viviam nas catacumbas abaixo do mundo perfeito que estava inserido, e dessa maneira indignando-se com essa situação, é muito instigante, uma vez que ele possui todos os privilégios possíveis naquela sociedade e não precisaria se incomodar com essa situação.
Notar que aqueles que estão no poder, como o pai de Freder, irão fazer de tudo ao seu alcance para manter seu status quo, — mesmo que isso envolva clonar a imagem da mulher que representa esperança para os operários numa robô e destruir seu legado —, é de arrepiar, uma vez observada a alta verossimilhança com a realidade.
— E onde estão as pessoas, pai, que com as mãos construíram sua cidade? — Onde elas pertencem. — E se algum dia aqueles nas profundezas se levantarem contra você?”
Trecho de Metropolis (1927).
No auge dos meus quatorze anos, nunca imaginei que um filme tão antigo tivesse essa grandiosa habilidade de exemplificar muito do que ainda encaramos na sociedade quase cem anos depois de sua primeira exibição. Observar os conflitos sociais nas alegorias e simbolismos que esse filme traz, me fez compreender com mais agudeza a situação de desigualdade social que o mundo contemporâneo enfrenta e que se torna mais alarmante a cada dia.
Mesmo que revoluções tomem tempo para se formar na vida real, a fagulha de esperança nascia em mim ao ver Katniss, que nunca imaginou e nem queria ser a face da rebelião, perceber sua importância e ser a líder desse movimento, a fim de destronar um homem sádico, que incentivava a morte de crianças em uma arena televisionada para à elite fútil e superficial dessa nação, a qual se divertia às custas desse banho de sangue. De fato, analisar mais detalhadamente as nuances apresentadas ali, foi determinante para o aprimoramento de minha percepção política e social, que formaram o ser humano que sou hoje.
É certo que nós não vivemos num mundo distópico, como os operários no subsolo da grande Metropolis ou nos Distritos abandonados pela Capital em Panem. Todavia, esse não é o ponto. É necessário questionar: será que as semelhanças desses universos distantes e fictícios são de fato tão imaginários assim? Será que trabalhar exaustivamente e ter sequelas, como burnouts ou crises de ansiedade é tão oposto às dificuldades dos trabalhadores em Metropolis? Será que testemunhar crianças palestinas sendo mortas todos os dias em Gaza por notícias na internet é tão distante da arena dos Jogos Vorazes, onde a morte delas não significa absolutamente nada?
Obviamente, as cenas de luta e a vontade de acompanhar o poder totalitário sendo derrotado nas páginas de um livro ou nas telas do cinema, com todos os desafios e recursos estéticos que acompanhar essa jornada proporciona, me atrai muito para esse universo, porém, não é o aspecto central que me fez consumir mais e mais obras essenciais do gênero, que entrei em contato um tempo depois dessas primeiras experiências marcantes: 1984, de George Orwell; Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; Ubik, de Philip K. Dick; Não me abandone jamais, de Kazuo Ishiguro; e Duna, de Frank Herbert. O simbolismo que todas essas obras carregam, e suas críticas para a sociedade contemporânea de quando foram escritos, são extremamente estimulantes para a mente e para o desenvolvimento intelectual da consciência social de qualquer pessoa.
Afinal, foi por meio dessas obras que me tornei um ser mais crítico e menos alheio à cruel realidade ao nosso redor: individualista, que visa o lucro em detrimento do sofrimento humano. Apenas ao questionar as condições postas a nós é possível pensar em mudança e progresso, caso queiramos de fato nos desarraigar de correntes que ainda, infelizmente, nos prendem como sociedade.
Incrível, André! Texto fluído e, ao mesmo tempo, rico. Rico contextualmente, pois trouxe a essência do papel da distopia, e pela relação de obras. Distopias revelam o pior da humanidade, que se manifesta historicamente: uma elite que sempre busca manter seu status quo ao longo da história.
Massa, André, parabéns pelo texto. Esse ano eu revi todos os filmes de Jogos Vorazes e me apertava muito o peito pela proximidade com o massacre em Gaza. A distopia carrega o que há de pior na sociedade capitalista e sempre se revela próxima demais de nós. A miséria e a violência foram gestadas fora da ficção. High tech, low life.
É incrível o poder da arte em denunciar de forma direta as mazelas da sociedade e nos fazer pensar sobre o que estamos vivendo e o quanto estamos sendo sujeitos passivos na história. Ótimo texto.