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Do Estigma à Ascensão: Hera como Arquiteta da Grandeza Divina

por Júlia de Alencar






Introdução


A mitologia grega, como um verdadeiro labirinto de narrativas divinas, muito se esforçava em criar significados e dar forma às suas divindades. Graças aos mitos, conhecemos muitas das figuras que, na visão de mundo helênica, revolucionaram e criaram o próprio conceito de história. No entanto, como já tratamos nesta coluna, antes de falarmos de Mitologia, precisamos falar de Religião, uma vez que mito e rito nem sempre vinham acompanhados pelas mesma regras.


Nesse sentido, a figura da Deusa Hera é uma das que mais se perdeu. Sua ritualística, tendo as suas características mais próximas às pessoas, foi completamente apagada pelas estereotipias dos seus mitos, que além de terem sido forjados para sustentar uma sociedade patriarcal, e por isso eram bastante posteriores à existência de Hera, frequentemente retratavam a Deusa de maneira simplista, associando-a ao ciúmes e à vinganças diante das infidelidades de Zeus. No entanto, uma análise mais profunda revela nuances e complexidades que desafiam diretamente essa visão unidimensional.


Na mitologia popular contemporânea, por exemplo, Hera é muitas vezes representada como uma rainha cruel, ciumenta e mesquinha, envolta em episódios de vingança contra as amantes de Zeus e seus filhos. Sua existência no mito se restringia às suas loucuras pelo seu marido. No entanto, como já dito, essa representação distorcida não abrange completamente a essência da Hera venerada pelos gregos (helenos) na sua tradição original. Ao revisitar sua imagem, afastamo-nos da caricatura simplificada e nos voltamos para as nuances da deusa que era reverenciada pelas cidadãs gregas comuns. Este texto busca, assim, desvendar a verdadeira Hera, uma originária, reconstruindo sua imagem para refletir a riqueza e complexidade que a tradição helênica lhe conferia.



Hera e a sua forja de heróis


Hera da antiga tradição helênica ultrapassa a figura vingativa e ciumenta. Para as cidadãs de Hélade, ela representava valores essenciais, incluindo a estabilidade familiar e a proteção às mulheres, especialmente nos rituais de casamento, onde sua bênção garantia a harmonia e a prosperidade. Ao explorar uma Hera originária, reconhecemos não apenas a deidade mitológica, mas também a figura que moldou as aspirações e crenças das mulheres na Grécia Antiga, através da ritualística.


(...)
Eu, deusa, sou, que uma vasta fama
tenho entre os deuses, e de Hera me chamam;
e sou esposa de Zeus, de quem
vosso parente sou e sempre fui.
Agora em meu socorro vem correndo,
e da prisão me livra em que me acho,
de Zeus a ordem violenta."

-Hera a Hefesto; Ilíada de Homero

Um exemplo que destaca a complexidade de Hera é sua benção a Jasão, líder dos Argonautas. Ao conceder seu favor a esse mortal, Hera revela uma faceta benevolente e colaborativa, alinhando-se com empreendimentos nobres que servem ao bem maior. Contudo, a traição subsequente de Jasão ao prejudicar Medeia testa os limites dessa benevolência. Hera, mesmo favorecendo Jasão inicialmente, retira sua proteção diante da traição moral evidente.


Esse ato enfatiza a justiça intransigente de Hera, que, ao favorecer mortais, permanece fiel a seus princípios e valores. A deusa opta por abandonar Jasão não por impulsividade, mas como uma demonstração de sua integridade e lealdade a princípios morais mais elevados. Isso mostra que, para Hera, a lealdade e a moralidade têm um peso significativo, superando qualquer favorecimento inicial a um mortal.


Hera, mesmo frequentemente simplificada como uma deusa ciumenta, ainda desempenhava um papel crucial na mitologia grega: preparar semideuses e heróis para a grandeza do Olimpo. Seu papel, bastante específico, era capaz de transcendê-la do estigma de vilã implantado, sendo vista como ferramenta essencial para a ascensão dos heróis, exemplificada no mito de Héracles.



Hera, longe de ser uma vilã cega pela inveja, foi uma força impulsionadora na vida de Héracles, impondo provações destinadas a forjar sua resiliência. As "Doze Tarefas de Héracles" representavam não apenas desafios físicos, mas uma jornada de autoconhecimento. Hera persistiu como uma mentora-desafiadora durante essas tarefas, guiando Héracles para alcançar seu potencial máximo.


Ao impor essas tarefas, Hera desempenhou um papel essencial na formação do herói, elevando-o acima das limitações humanas e preparando-o para a grandeza divina. Assim, Hera, longe de ser uma antagonista ciumenta, emerge como uma figura arquetípica que, por meio de suas provações, contribuiu significativamente para a ascensão dos heróis ao Olimpo, moldando-os em seres dignos de sua divindade.



Um começo antigo, ancestral


Ao explorarmos os valores associados a Hera, devemos considerar não apenas a Grécia Antiga (Hélade), mas também a sociedade micênica, onde suas raízes foram profundamente plantadas. Na sociedade micênica, mais matrilinear, Hera refletia uma forma de poder feminino anterior à ascensão do panteão olímpico liderado por Zeus. A transição para a sociedade patriarcal da Grécia Antiga não a reduziu à sombra de Zeus, mas manteve sua relevância e influência.


"Cante, musa, sobre Hera, a deusa soberana, a mais venerável entre as imortais, a esposa de Zeus, a rainha do Olimpo." - Hinos Homéricos, Homero

Hera, como protetora das mulheres, desempenhava um papel crucial nos rituais matrimoniais e sociais da sociedade grega. Sobretudo, seus cultos reverenciavam-na como uma figura simbólica de estabilidade e proteção feminina. Suas ações mitológicas, como no nascimento de Heracles e o episódio de Io, demonstram uma complexidade que vai além de estereótipos simplificados, evidenciando que suas punições eram direcionadas a infrações divinas, não às mulheres comuns.


A relação entre Hera e Zeus, frequentemente interpretada de forma simplista, revela nuances além das caricaturas modernas. Eles compartilham um vínculo de amor complexo, moldado por diferenças e desafios, mas fundamental para a ordem cósmica. Hera e Zeus representam uma dualidade divina essencial, um equilíbrio de forças opostas necessárias para manter a estabilidade no Olimpo e em Hélade.



Hera, longe de ser apenas uma deusa marcada por ciúmes, emerge como a mais poderosa das deusas, igualando-se a Zeus em muitos aspectos. Sua imponência não se restringe a uma submissão feminina estereotipada, mas reflete uma força feminina poderosa e equitativa. Seu respeito não é apenas baseado no temor, mas também no reconhecimento de sua posição como consorte de Zeus, sendo a primeira entre as deusas.


O culto a Hera, desde os antigos rituais gregos até as práticas contemporâneas, destaca a persistência da devoção à deusa. O Reconstrucionismo Helênico, buscando autenticidade histórica, e práticas mais ecléticas, adaptadas à interpretação pessoal, mantêm viva a tradição, por exemplo. Independentemente da abordagem, a adoração a Hera continua a ser uma expressão da espiritualidade humana e da conexão com tradições antigas, vinculada à sua manifestação mais potente: a ritualística.


Já na complexa mitologia grega, Hera mostra-se como uma figura multifacetada, a todo instante contestando e desafiando a representação unidimensional relegada a ela, que persiste na mitologia popular contemporânea. Enquanto muitos a veem como uma deusa marcada por ciúmes e vinganças, um olhar mais atento revela uma Hera cuja essência vai além das caricaturas simplificadas. Neste sentido, este texto buscou desmistificar a imagem da rainha cruel e ciumenta, resgatando a verdadeira Hera da tradição grega original, muito anterior à Grécia Antiga.


"Ó tu, senhora Hera, e esposa do senhor dos deuses, Zeus, ó tu, cuja mão mantém o poder supremo." - Prometeu Acorrentado, de Ésquilo

Considerações finais


Tendo estas informações em mente, fica um pouco mais fácil perceber o porquê de Hera ser tão venerada pelos cidadãos gregos, mesmo com a suas grotescas participações nos mitos. Nesse sentido, internaliza-se sua natureza, que era muito mais do que uma essencialmente vingativa.


Hera, como protetora das mulheres, era central no culto feminino da Grécia Antiga. Sendo as suas práticas reverenciadas não apenas nos rituais matrimoniais, mas também na sua constante e diária dedicação às mulheres comuns, como evidenciado em seus mitos.


Mais do que tudo, a imponência de Hera, como rainha dos deuses, era fundamentada no seu respeito e temor, que inspiravam entre os próprios seres divinos. Suas punições às amantes de Zeus eram uma resposta justa à quebra das leis divinas, não meramente a manifestação de ciúmes. Em outros casos, as punições nada mais eram do que provações, um esforço divino de preparar o humano para habitar nos territórios sagrados dos deuses.


Portanto, ao desvendar a verdadeira Hera, este texto convida cada um que o lê a uma reinterpretação mais equilibrada da deusa e dos seus epítetos, destacando, sobretudo, a sua complexidade, a sua influência duradoura e o seu papel vital na formação da cosmovisão e das práticas religiosas na Grécia Antiga. Hera, longe de ser uma vilã unidimensional, é uma deusa cujo legado ressoa através do tempo, tudo pela sua grandeza.



Referências:

Slater, Philip E. The Glory of Hera : Greek Mythology and the Greek Family

Steven Goldberg. The Inevitability of Patriarchy , (William Morrow & Company, 1973)


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Conteúdo absurdamente necessário! Hera foi uma das divindades mais deturpadas com o passar do tempo

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