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Foto do escritorFelipe Souza

"Doutor Estranho - Shamballa": A alegria de um triste fim

Atualizado: 8 de out.








Por muito tempo, os quadrinhos foram associados a uma mídia exclusivamente infantil.


Não por acaso, ocorreu o “Comics Code Authority”, um código de censura adotado pelas grandes editoras americanas, que determinou, por décadas, o que seria apropriado ou não para a mídia, prejudicando aquelas com enfoque em terror e qualquer tipo de obra com temáticas mais maduras. Uma das soluções adotadas foi a mudança de formato, com a adoção de um padrão que viria a ser chamado de “Graphic Novel”, sendo considerada a primeira a obra Um Contrato com Deus, lançada em 1978 pelo grande Will Eisner (1917 - 2005). Esse formato passou a ser utilizado por Marvel e DC para contar histórias fechadas, à parte da cronologia geral.


Um dos grandes expoentes dessa transição é John Marc DeMatteis (1953 - ), que conquistou uma posição de destaque após escrever arcos famosos como Liga da Justiça, na DC, e Os Defensores, na Marvel. Em 1985, ele lançou Moonshadow, uma graphic novel altamente inspirada em clássicos da literatura, considerada por muitos sua obra mais pungente.


Mas foi apenas no ano seguinte que DeMatteis, juntamente com o artista Dan Green (1952 - 2023), famoso por suas colaborações em quadrinhos do Wolverine e do Homem-Aranha, e que aqui abordaremos: Doutor Estranho, mais especificamente sua história de maior profundidade temática: Shamballa. De início, é preciso destacar merecidamente a arte de Dan Green. Talvez o ponto mais alto do quadrinho, o desenhista entrega uma arte pintada que valoriza a introspecção e o silêncio, visto que a obra possui poucas falas, mas reitera muito o pensamento de Strange, em páginas cobertas quase inteiramente por textos excessivamente rebuscados em sua linguagem, proporcionando um mergulho completo nas ideias e na mais pura alma do Mago Supremo.



Shamballa deriva do sânscrito “Shambhala”, que significa “um lugar de paz, felicidade, tranquilidade” e seria um local, segundo a crença budista, onde todos os seus habitantes seriam portadores de um conhecimento divino, seres iluminados. Na trama, acompanhamos Strange retornando ao Himalaia para prestar homenagem ao seu antigo mestre, o Ancião, e encarar uma última jornada, a partir de um artefato ancestral, que pode significar o início de uma nova Era Dourada para toda a humanidade.


O artefato, um cubo repleto de espelhos, serve para alertar, desde o princípio, qual seria o seu maior desafio: o homem no reflexo. Stephen entra em uma jornada contra ninguém menos que si mesmo, seus medos, vaidades, fracassos e sucessos. Logo na primeira tarefa, ele é levado a Yucatán, no México, onde encontra um artefato oculto de épocas imemoriais que o faz reviver as memórias e vítimas de um reino há muito esquecido, uma clara referência aos brutais massacres aplicados contra os povos maias naquele mesmo território. Um desafio fácil, Strange logo vê seu ego totalmente dominado pela arrogância, algo que seu mestre já o alertara há anos.


Em sua segunda investida, num templo budista, o mago é confrontado pelo desejo e, arrogantemente, sucumbe. As várias estátuas ao seu redor tomam vida e prometem deliciar o sábio em prazer, o qual não teria meios de avançar se não fosse pela voz de seu mestre, no âmago de sua alma, lhe instruindo mais uma vez. Agora, apesar da vitória, Strange não esboçava sorriso algum em reconhecimento ao seu próprio fracasso. É interessante avaliar como os desafios não são para os poderes de Strange, nem os artefatos, nem suas defesas, apenas instrumentos narrativos que permitem que DeMatteis e Green explorem física e metafisicamente a psique de uma das “personas” mais complexas da Marvel.


Em sua última tarefa, o Mago Supremo deve atravessar um labirinto aparentemente comum, mas que em seu coração guarda um segredo: um espelho, assim como aquela caixa que o protagonista recebera. Em seu reflexo, Stephen vê aquilo que mais teme, a si mesmo, sua sombra, embebida em orgulho e lascívia. Aqui, a sombra, por mais que se revele Maya, uma deusa, cumpre em simbologia o significado mais junguiano da palavra, como sendo tudo aquilo que Strange é, mas desejaria não ser; a parte reprimida que se oculta até mesmo do mais sábio entre os feiticeiros.


Maya alerta que morrerá se o último artefato for coletado e que, nesse caso, o mundo sucumbiria à mais pura realidade, algo tão tátil que conceitos como sonhos ou medos não teriam espaço para existir. Frente a esse dilema, Strange pede perdão e desiste. É curioso como, nesse ponto, parece que tudo o que fora mostrado até então nessa curta história soa como prolegômeno para o ensejo do que está por vir. Há, no final, uma profusão de ideias a partir da filosofia de Nietzsche, plantadas desde o início do quadrinho.


O que leva o mago a desistir, por fim, é sua compreensão acerca da natureza cíclica de todas as coisas e de cada indivíduo. De como o um é, ao mesmo tempo, o todo. Não haverá um incidente externo, mas sim infinitos internos, pois cada indivíduo é dotado de sua “vontade-potência” (a força, segundo Nietzsche, que propulsiona a vida em cada um de nós), sua própria “Shamballa”.


Um lugar que, ao contrário das lendas, não é desprovido do mal e da injustiça, mas que entende tais conceitos como constituintes de quem somos, demasiadamente humanos e, portanto, passíveis de amor. Um tipo específico deste, que não possui distinção moral e assim permite reconhecer-se no outro como um igual, tal qual Strange fizera ao reconhecer a vida de seu mestre em si e em Hamir, um simples monge que serviu e também estudou com o Ancião.


Em Shamballa, há uma ruptura do que se espera de um quadrinho tradicional, até mesmo para o formato da graphic novel. Talvez, nos dias de hoje, não pareça tão disruptivo, pois a própria carreira de DeMatteis está repleta de obras tão “literárias” quanto essa, mas em 1986 isso não era tão comum. O Doutor Estranho é um personagem que nasce de suas falhas e, mesmo após sua redenção heroica, continua sendo definido por elas.


Ele prova que não há, de fato, uma superação do defectível, nem mesmo para quem é super; mas sim que o “super-homem” (de Nietzsche) é aquele capaz de incorporar suas falhas em derrotas e vitórias. É aquele capaz de sorrir à alegria de um triste fim.

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3 comentários


Volnei Freitas
Volnei Freitas
08 de out.

Felipe, vc me fez colocar Shamballah novamente na lista, apesar de ter uma pilha de HQs/Graphic Novels não lidas. Tenho três diferentes versões impressas, alaliásE adoro Moonshadow, uma obra de arte, assim como seu autor, fora do tempo.


Adorei o texto! Muito perspicaz sua análise a partir do übermensch de Nietzsche, de aprender a sorrir a alegria de um triste fim, afinal somos nossas fraquezas.


Pontuo uma questão interessante, o fato do Ancião realçar o monge que o serve, o caminho da humildade.


Parabéns! Mais uma vez, show de bola!!

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mariacssouza02
mariacssouza02
07 de out.

morrendo de vontade de ler a história agora!!!

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Volnei Freitas
Volnei Freitas
08 de out.
Respondendo a

Sugiro fortemente! É incrível, além de deslumbrantemente ilustrada.

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