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Entre escritos, neve e Pequenos Visitantes

Um conto por NICOLAS R. AQUINO





Boa noite, telespectadores da rádio Sons dos Alpes. Trazendo breves atualizações do tempo aqui da nossa pequena cidade... Fortes tempestades de neve se acumularam no norte das montanhas; as autoridades aconselham que todos evitem sair de casa nas próximas horas. As condições meteorológicas pioraram rapidamente, com ventos fortes e uma nevasca pesada. Pedimos a todos os moradores da região que estejam atentos às atualizações e sigam as instruções das autoridades locais. Mantenham-se aquecidos e seguros em suas casas. Aconselhamos o preparo de boas xícaras de chocolate quente. Continuaremos monitorando a situação e fornecendo informações atualizadas. Fiquem seguros e uma feliz véspera de Natal…


As atualizações climáticas não eram nada boas, e sobretudo Isaac encontrava-se em um estado de completa revolta. Não com os ventos fortes, nem com a nevasca, e sim consigo mesmo, principalmente pela sua teimosia. Sabia muito bem da possibilidade de fortes tempestades de neve na região, e mesmo assim decidiu permanecer naquela pequena cabana de madeira isolada no meio dos pinheiros que cercavam as encostas.


Tudo estaria perfeito: o clima das montanhas da forma que ele mais gostava; a cabana rústica aconchegante e bem aquecida – um casal de velhinhos havia alugado o lugar por um preço bem razoável; e Isaac trazia consigo material suficiente para escrever uns cinco livros, mesmo sabendo da praticidade de escrever em um notebook, tudo isso porque ele se considerava um escritor da velha guarda, um amante do bom e velho papel e caneta. Mas, mesmo com a quantidade de material e com suas ideias muito bem elaboradas, não conseguia avançar em seus escritos, e por isso decidiu permanecer nas montanhas, mesmo com as condições nada favoráveis.


Estaria tudo bem, na verdade, se não fosse véspera de Natal e Isaac não estivesse alguém o esperando em casa.


***


Ficar na companhia do noticiário estava o deixando ansioso. Isaac já havia escutado pelo menos três vezes que “árvores caídas estavam bloqueando as estradas”, e algumas muitas vezes sobre comerciantes que perderam os lucros da véspera de Natal por não conseguirem chegar até suas lojas. Mas a gota d' água veio quando o apresentador começou a falar com um divertimento na voz, diretamente para os filhos:


“Ainda bem que o Papai não deixou os presentes para última hora.”


Aquilo era o suficiente para Isaac aceitar de vez que estava fadado a passar as festividades sozinho e enclausurado. Assim, em uma manobra estratégica, ele sintonizou o rádio em uma estação de 48 horas dos melhores hits natalinos da história. Podia até não estar tendo a melhor véspera de Natal de todas, mas sabia que havia gente em situação bem pior à dele.


Imediatamente pensou naqueles que ficariam presos na estrada, e nos comerciantes. Com todos esses pensamentos, tentou assumir uma postura positiva da sua situação; sabia muito bem que não era nada bom naquilo, mas ainda assim jogou tudo nas mãos do espírito natalino. Aproveitando a pequena dose de positividade, colocou mais lenha na lareira, logo sentindo o cheiro bruto e aconchegante da madeira queimando e pendurou sua meia reserva na porta, mesmo que não estivesse em casa. Isaac odiaria não receber seus presentes ou, quem sabe, carvão pelo seu péssimo desempenho como escritor nos últimos dias.


Posicionou a estrelinha brilhante no topo do pinheiro que estava decorando desde do dia em que chegou na cabana. Em seguida, espalhou as decorações natalinas que os donos da cabana tinham deixado em uma caixa de papelão surrada no canto. Finalmente ele sentiu: a cabana parecia estar suficientemente no clima natalino.


Contemplando a pequena sala enquanto ouvia tanto os hits natalinos quanto a melodia que os ventos gelados produziam, Isaac pegou um punhado de folhas amareladas, sua caneta tinteiro e sentou-se no sofá-cama de couro falso vermelho. Já que não poderia sair, decidiu focar no trabalho do seu mais novo livro: A Vida Secreta Dos Pequenos Seres Encantados Do Quintal.


Após uns bons minutos encarando as folhas, Isaac teve um breve estalo e começou a escrever, ao mesmo tempo que mergulhava em lembranças de toda uma vida. O processo daquele livro em específico parecia bastante lento desde que Isaac havia decidido se tornar escritor. Já haviam se passado bons anos desde a publicação do seu primeiro romance e, desde então, tinha emplacado um sucesso atrás de outro. Sua obra mais famosa até aquele momento se passava em um mundo medieval, onde dois cavaleiros viajavam juntos em busca de aventura e feras para derrotar; aos poucos os sentimentos de um pelo outro iam se aflorando e, bom, é melhor não darmos spoilers…


Ainda assim, vale dizer que um dos pontos que os fãs de Isaac mais admiravam nas suas histórias era justamente a presença de belas criaturas do ar; “Serenas”, como ele gostava de chamar.


Isaac desde menino sempre foi um aficionado por histórias Celtas e Galesas, não à toa eram grandes inspirações na construção de suas próprias. Aquela paixão vinha de gerações, na verdade. Seu avô, outro apaixonado por histórias, sempre dizia que as Serenas moravam nos quintais de bons garotos e que, se oferecessem abrigo e comida a elas, poderiam receber presentes e até dons em troca. Embora não fosse mais o garotinho de olhos brilhantes que montava casinhas na copa das árvores para criaturinhas invisíveis, Isaac ainda nutria um carinho gigantesco pelas histórias do avô, e por isso decidiu contá-las às outras pessoas, na intenção de apresentar o mundo mágico em que acreditava viver.


Como parte dos seus rituais de escritas, Isaac incorporou todas essas histórias à sua rotina na cabana, deixava todas as manhãs pão e mel em um pratinho todo ornamentado na janela. Sabia que as fadas adoram pequenas ofertas, e que estas poderiam lhe garantir um favor valiosíssimo. Também deixava bijuterias brilhantes, que tinha trazido de casa, nos arredores da cabana. Mas, ao mesmo tempo, Isaac não ignorava o lado travesso, e até cruel, desses pequenos seres. Nunca fazia nenhum elogio direto a elas, pois sabia que podia despertar sua ira, e sempre usava as meias ao avesso para confundir fadas que quisessem pregar peças nele.


Fazer todos aqueles rituais ajudava Isaac a lidar com a certa solidão que encontrou na encosta afastado da cidade. Ser um escritor às vezes significava longos períodos da mais pura solidão e ele se sentia culpado por não poder estar sempre presente, ou por involuntariamente preferir a companhia dos livros à das pessoas. Por isso, para Issac, tentar estabelecer uma conexão com os serezinhos de seu livro parecia uma ótima forma de não se sentir tão sozinho.


De vez enquanto ele acreditava estar levando tudo a sério demais, principalmente quando parecia escutar risadas finas e batidas leves pelas paredes da cabana. Questionou algumas vezes se o estresse não o estaria enlouquecendo, mas, ainda assim, sabendo muito bem que estava sozinho na cabana. Bem, quase sozinho, já que o os donos da cabana haviam deixado um gato, um persa gordinho de pelagem cinza escura, que parecia estar o tempo todo dormindo, ficar no lugar e, o melhor de tudo, de graça!


O estado do gato incomodava Isaac às vezes, e ele acreditava seriamente na ideia de que os gatos dormiam para absorver as energias negativas do ambiente. Na verdade, o incômodo vinha do fato de que desde do dia em ele que chegou na cabana, o gato havia entrado em estado quase de coma. “Talvez a minha negatividade possa estar matando essa pobre criatura...”, ele havia pensado enquanto chegava à conclusão de que não poderia ser o gato o responsável pelos sons que perturbam o suposto silêncio de cabana isolada nas montanhas.


Como forma de lidar com os supostos visitantes, colocou sinos de prata nas entradas, lembrando-se das histórias do avô: aquele gesto significaria proteção dupla contra suas Serenas, sendo o ferro muito bem conhecido por ele como uma arma letal contra todas as espécies de fadas. Na maioria das lendas, era usado para queimar suas peles e impedir a entrada ou saída em ambientes, enquanto os sinos poderiam tanto alertá-lo sobre a chegada de uma fada no ambiente, como afastar sua presença.


Pensar que poderia haver fadas dividindo seu sofá-cama deixou Isaac com uma risada frouxa. “Talvez, se eu pedisse com jeitinho, elas poderiam sussurrar ideias do que adicionar ao meu livro”, ele pensou imediatamente, percebendo que não haveria nada melhor do que os próprios objetos de estudos para contar seus segredos.


***


Isaac deveria estar com muito sono ou fome, ou qualquer outra sensação parecida, já que não havia feito nenhuma pausa desde que voltou a escrever. Em um piscar de olhos, pesados pelo cansaço, ele se assustou ao “ver” um pequeno vulto brilhante passar na sua frente. Imediatamente pensou estar alucinando. “Provavelmente era só o reflexo dos pisca-pisca da árvore de natal” ele pensou, mas então viu mais um, dois, três... sete vultos?

“Não é possível!” Isaac exclamou e fechou os olhos, coçando-os até enxergar os pontinhos coloridos que se formavam na escuridão; ao mesmo tempo, controlou a respiração, contou de um a dez e abriu os olhos. Os vultos tinham sumido. Aquilo deixou Isaac em um mix de alívio com um certo desapontamento; pensou o quão magicamente bizarro seria encontrar Serenas naquela cabana no meio do nada.


No fim, porém, ele levou sua quase experiência mágica como um aviso de que estava na hora de descansar um pouco. Retirou do pulso a xuxinha preta que usava como pulseira e amarrou seus longos cachos, que estavam começando a ficar grisalhos, em um coque malfeito. Vestiu um suéter verde com bolinhas de natal vermelhas bordadas e foi até a cozinha para preparar uma boa xícara de chá. Sentado em um banco acolchoado de frente para janela, Isaac encarava a neve caindo lá fora; o clima havia melhorado e era possível ver as grandes árvores da tundra que cercavam a cabana.


Como em um filme slasher, os olhos de Isaac se encontraram com outros, porém brilhantes e totalmente brancos. Logo percebeu que algo o espiava por trás de uma das árvores e, assustado, fechou as cortinas vermelhas da janela. Quando espiou pela brecha, viu que aquilo havia sumido. “Talvez”, Isaac pensou, “ eu esteja realmente enlouquecendo”. Ele ponderava com convicção tal possibilidade, mas logo foi tirado de seus pensamentos pelos miados vindos da sala do gato dorminhoco.


Com alguns passos, Isaac já estava na sala. A cabana que já era pequena, ficava ainda menor sendo hospedagem de um homem de 1,84m, e que parecia estar sempre desviando de poças d'água com as longas distâncias que percorria em pouquíssimo tempo. Assim que parou de frente para o tapete felpudo que ia do centro até a borda da leiteira, Isaac teve a certeza de que estava de fato louco: o gato, que ele sequer sabia o nome, estava flutuando pela sala a uma proximidade nada segura do fogo.


Isaac ficou paralisado, incapaz de reagir. Ao mesmo tempo, o gato miava com uma clara revolta; folhas laranjas de outono pareciam dançar à sua volta junto ao vento; e aquilo não poderia ser algo que apenas saíra da cabeça de Isaac. Não, definitivamente não.

Mesmo não convencido de que funcionaria, ele decidiu arriscar e as chamou:


“Serenas, são vocês quem estão brincando com esse pobre gato?”


Por alguns segundos, não houve resposta e tudo pareceu parar até que as folhas finalmente se dispersassem e o gato fosse atirado em direção a lareira. Mas Isaac foi mais rápido e, em um impulso instintivo, agarrou o gato no ar que, ao invés de o agradecer, começou a protestar e a arranhar seu salvador. O pequeno infusado só parou quando risadas baixas pareciam vir de todos os lugares. Se, naquele momento, o gato parecia conseguir escutá-las também, então talvez Isaac não estivesse enlouquecendo, e sim dividindo a rústica cabana com um gato que quase virou o prato principal da ceia de algumas fadas travessas.


Após alguns minutos de completa busca por uma justificativa racional, Isaac desistiu de viver a cena em que o protagonista tem um curto ataque ao descobrir um mundo mágico totalmente novo ou o famoso todas as histórias são reais. Sobretudo, estava se aproximando da meia-noite e logo a depressão advinda dos planos frustrados iriam abatê-lo; ele abriria uma garrafa de vinho e beberia aos prantos com o gato dorminhoco do lado, tudo isso ao perceber que era um escritor cujo sonho de descobrir que as fantasias que o acompanhavam a vida toda eram, no fim, reais.


Após o breve momento de reflexão, aceitação e esclarecimento, Isaac pegou um de seus muitos livros sobre a história Celta e procurou maneiras simples de se comunicar com as suas aparentes colegas fadas, mesmo que, sem saber, já havia imbuído muita comunicação com tais seres nos seus rituais natalinos. Mas naquele momento, predominava a noção de que precisava da permissão das fadas para que ele pudesse enxergá-las, e que só desta maneira poderia descobrir os motivos que as levaram a se estabelecerem na cabana. Após alguns minutos de leitura e anotações, Isaac concluiu que precisava de:


1) Fazer uma boa oferta de paz que demonstrasse respeito às atitudes delas (mesmo que não concordasse com o pobre gato ser carbonizado);


2) Encontrar um guia sobrenatural, já que esses seres vivem entre os dois mundos (como estava incapacitado de sair e não tinha tempo, o gato teria de servir);


3) Propor uma aliança de amizade para que elas o permitam vê-las (talvez oferecer o gato para que terminem o serviço?);


̶4̶)̶ ̶T̶e̶n̶t̶a̶r̶ ̶u̶m̶a̶ ̶d̶a̶s̶ ̶c̶a̶n̶t̶i̶g̶a̶s̶ ̶m̶á̶g̶i̶c̶a̶s̶ ̶a̶n̶t̶i̶g̶a̶s̶ ̶p̶a̶r̶a̶ ̶q̶u̶e̶ ̶e̶l̶a̶s̶ ̶s̶e̶ ̶m̶a̶n̶i̶f̶e̶s̶t̶e̶m̶ ̶(̶d̶e̶i̶x̶a̶ ̶p̶a̶r̶a̶ ̶l̶á̶,̶ ̶n̶ã̶o̶ ̶s̶e̶i̶ ̶c̶a̶n̶t̶a̶r̶)̶;̶


̶5̶)̶ ̶D̶e̶s̶e̶n̶h̶a̶r̶ ̶s̶í̶m̶b̶o̶l̶o̶s̶ ̶a̶r̶c̶a̶n̶o̶s̶ ̶q̶u̶e̶ ̶c̶o̶n̶j̶u̶r̶e̶m̶ ̶a̶s̶ ̶f̶a̶d̶a̶s̶ ̶(̶e̶s̶q̶u̶e̶c̶e̶,̶ ̶t̶a̶m̶b̶é̶m̶ ̶n̶ã̶o̶ ̶s̶e̶i̶ ̶d̶e̶s̶e̶n̶h̶a̶r̶)̶.̶


***


Isaac desceu as escadas do segundo andar às pressas. Faltavam poucas horas para meia-noite e ele não queria ter seus planos deprimentemente frustrados. Depois de dar uma olhada na lista de possíveis formas de agradar as Serenas, Isaac decidiu começar com uma boa oferta. Então, ele pegou um de seus suéteres com gatinhos bordados, alguns curiosamente semelhantes ao persa que quase virou churrasco, e ofereceu para que as pequenas travessas o queimassem (ele poderia lamentar a perda mais tarde, ok?).


Com a voz carregada de uma entonação pragmática, ele anunciou:


“Oh, poderosos Seres do Ar, aceitem esse quase gato como tributo para terminarem sua oferenda ao fogo.”


Ele parou e nada. Nenhuma manifestação ou sinal das pequenas criaturas.


Talvez estivessem cansadas de ofertas. Mas, na verdade, Isaac não havia visto o momento em que o pão e mel que deixou na janela sumiu; ou todas as manifestações estranhas que vinham ocorrendo nos dias em que passou na cabana. Como ele não questionou as pinhas que nasciam em uma árvore cortada e sem raiz? Ou os torrões de açúcar que sumiam antes que os mergulhasse no café? Até mesmo todas as batidas na porta que não atendeu achando estar escutando coisas? Talvez as Serenas só tenham tomado medidas extremas graças à falta de atenção de Isaac. Mas ele, diferente de mim, o narrador, não tinha muito tempo para ficar pensando naquilo. Como as oferendas não haviam funcionado, era hora de tentar o guia espiritual, e ele sabia exatamente onde encontrar um.


O gato estava cochilando novamente no tapete. Isaac ficou surpreso por aquela bola de pelos conseguir dormir mesmo com tudo o que estava acontecendo à sua volta. “Talvez as fadas tivessem usando pó-do-sono nele?”, Isaac duvidava da possibilidade, mas ainda assim a cogitaram. No fim, ele preferiria acreditar que gato era apenas extremamente preguiçoso. Mas, mesmo assim, teria de acordá-lo. Eles tinham um trabalho importante pela frente…


Com alguns arranhões nos braços, e depois de várias tentativas frustradas, Isaac finalmente havia conseguido acordar o seu guia. Ele posicionou o gato rabugento sobre alguns livros e papéis que simulavam um trono perto do sofá-cama. Não sabia ao certo o que viria em seguida, mas, em um piscar de olhos, as folhas de outono dançantes voltaram, mas daquela vez acompanhadas de pétalas de flores variadas e algumas pinhas.


O gato-guia parecia ver as Serenas, já que deu início a um miado longo e melodioso, como quem cria uma conexão mágica. Por alguns breves segundos, Isaac conseguiu vislumbrar as verdadeiras formas dos pequenos seres.


Eles pareciam pequenas pessoas da cintura para cima, mas a parte de baixo e os cabelos se assemelhavam às folhas e pétalas que vira. Aquela visão era maravilhosa e Isaac nunca havia presenciado algo tão belo na vida; parecia com uma ilusão ou um sonho vívido. Segundos depois elas desapareceram da vista de Isaac e voaram em direção à janela antes de sumirem novamente.


Quando olhou o mundo fora da cabana pela janela, se assustou novamente ao ver a figura que se escondia atrás dos troncos das árvores. Isaac foi até a sala e tomou o gato-guia que estava prestes a dormir de novo. Para a surpresa de Isaac o animal não se incomodou com o gesto; em frente a janela, mais uma vez, conseguiu enxergar, mesmo com a neve forte voltando a cair, a criatura que parecia se camuflar com as folhas lá fora.


Era uma figura magnífica, Isaac percebeu mais uma vez, e sua pele pálida com linhas suaves em marrom se assemelhava aos carvalhos brancos que cresciam nas redondezas; os longos cabelo cor de creme misturados a um verde musgo balançavam com os fortes ventos que sopravam canções. Antes de reparar as galhadas que se projetavam no topo da cabeça ou as orelhas pontudas, Isaac sabia que aquela criatura em específico que observava tratava-se de uma integrante da realeza das fadas.


Aos poucos a dama da floresta se aproximou da janela, parecendo se movimentar com o vento, quase como se dançasse em direção à cabana. Isaac sorriu quando a encarou pelo vidro, vendo que a Serena usava todas as bijuterias que ele espalhara pelos arredores. Por um certo tempo, ambos ficaram ali, cara a cara, analisando um mundo de diferenças. A dama com um sopro dos mais suaves deixou toda a janela coberta de geada e com as garras ela escreveu uma imagem no vidro da janela que Isaac precisou se esforçar para conseguir ler.


ꂦ ꌗꀤꈤꂦ ꈤꍏ ᖘꂦꋪ꓄ꍏ... ꍏꌗ ꀤꎭᖘꍟꀸꍟ ꀸꍟ ꌗꍏꀤꋪ…


“O...sino na...porta...nos impede... de sair?”, Isaac leu em voz alta.


Após ler a mensagem, tudo começou a fazer mais sentido e ele lembrou-se do sino de ferro envolto em uma guirlanda que colocou na porta logo no dia em que chegou na cabana, assim como os outros que espalhou pelas entradas e brechas da cabana. Ao invés de afastar fadas da floresta que poderiam tentar pregar peças nele, Isaac acabou as prendendo na cabana, criando uma barreira que não as permitia usar nenhuma das brechas para voltar às suas vidas.


A culpa veio de imediato... Isaac estava tão preocupado em terminar seu novo livro que, além de ficar preso durante a véspera de Natal, prendeu um grupo das Serenas consigo. Pensou nos sinais diários que ignorou... pensou no gato em seu colo, que ele sequer havia se dado ao trabalho de descobrir o nome; pensou em Wallace pela primeira vez na noite, desde o momento em que percebeu que realmente não chegaria em casa para passarem o feriado juntos como tinha prometido. Isaac lamentava tanto pela solidão da vida como escritor que em momento nenhum havia se questionado se não era ele o responsável a se colocar naquele estado.


De forma apressada, Isaac foi até a porta e a puxou. Devido à neve acumulada, ela não abriu. Ele tentou de novo e de novo, mas não conseguiu. Então, desesperado, ele fez um pedido:


“Primeiramente, lamento por tê-las prendido aqui comigo. Sei que devem ter sido dias bem deprimentes, e que provavelmente se tivessem mais de vocês teria sido eu o escolhido para ser jogado em direção à lareira, e não o pobre gato, que também negligenciei. Peço que me ajudem a puxar a porta para que eu tire o sino, para que todas possam sair. Como não podem tocar em nada, se puderem confiar em mim, segurem em minhas roupas e puxamos juntos.”


No começo Isaac sentiu que ainda estava puxando sozinho. Uma vez… duas vezes… na terceira, sentiu pequenas mãozinhas o puxando pelo suéter; na gola, nas mangas e até o gato parecia o puxar pela barra da calça. Com um estrondo, a porta se abriu, jogando Isaac para trás (esperava não ter caído em cima e esmagado as Serenas). O puxão havia sido mal calibrado, tão forte que o sino voou e se perdeu na neve da floresta lá fora. Demorou um tempo para Isaac perceber que estava cercado e conseguir ver os pequenos seres que vira anteriormente. Sobretudo, tinha uma certa noção de que finalmente não as via apenas pela presença do gato, que se sentava em cima de sua barriga, mas sim porque no momento em que trabalharam juntos, haviam estabelecido um contrato de amizade genuíno.


A dama estendeu a mão e o ajudou a levantar. Enfim, de frente um para outro, sem a barreira da janela, Isaac conseguia perceber melhor a bela criatura que de começo o assustara. Com um sussurro que mais parecia uma brisa de verão, ele ouviu:


ꂦꌃꋪꀤꁅꍏꀸꂦ ꉓꂦꈤ꓄ꍏꀸꂦꋪ ꀸꍟ ꃅꀤꌗ꓄ꂦꋪꀤꍏꌗ


Obrigado, Contador de Histórias...


E, então, a dama e as outras Serenas desapareceram.


***


Ainda um pouco atordoado, Isaac fechou a porta. A cabana estava congelando com o vento frio que entrava por todas as brechas. Ele foi até a cozinha e se serviu uma taça de vinho; voltando para a sala, sentou-se no sofá de couro falso e antes mesmo que pudesse lamentar por algum pensamento intrusivo de solidão, o gato deitou ao seu lado. Os dois se olharam e, naquele momento, pareciam ter entendido que poderiam fazer companhia um para o outro.


O relógio enfim badalou, anunciando que estavam em 25 de dezembro. Isaac tentou retomar o espírito natalino que usara para decorar a cabana, mas no momento em que se virou para dar um Feliz Natal para o gato, um vento congelante invadiu toda a cabana, se lançando em direção a eles. Isaac teve apenas tempo de pegar o gato, os escritos dos últimos dias e fechar os olhos. Quando os abriu, estava de frente para uma grande porta de madeira.


Olhou para o chão e gritou ao perceber que estava pisando em uma calçada, uma de verdade, não coberta por neve e nem nada. Olhou para frente e, quando esticou o braço para apertar a campainha, a porta se abriu. Não acreditou quando viu Wallace ali na sua frente, ele parecia ter parado de chorar a pouco, mas abriu um sorriso de ponta a ponta antes de dizer para Isaac:


“Você veio… Ah, Isaac, achei que passaríamos nossa data comemorativa favorita separados... mas você está aqui! Está aqui de verdade e ainda trouxe um gato de presente.”

Será que Isaac havia tomado tanto vinho que capotou e estava sonhando com tudo aquilo? Não, impossível, já tinha tido sua dose de sonhos suficientes por uma noite. Sabia que era real. Ele estava de frente para Wallace, com seu gato-guia na mão e prestes a comemorar o Natal como deveria ter sido desde o começo.


Ele nutria a certeza de que as Serenas eram as responsáveis por tudo o que estava acontecendo. Lembrou das histórias que lia quando criança, as que diziam que “as fadas podiam viajar longas distâncias usando os eventos como guia”. Sentiu um calor no coração cheio de agradecimento, então olhou para o céu e pediu um obrigado silencioso. Com o gato debaixo do braço, os escritos em uma das mãos e a outra entrelaçada com a de Wallace, Isaac passou pela porta ansioso para comemorar aquela noite de Natal, que não passaria sozinho, trancado em uma cabana na montanha abrigada por pequenos seres mágicos.



Conteúdo presente na edição de DEZEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. A Revista Especular é um selo do GRUPO EDITORIAL LUMINAR




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