Na virada do século XVIII para o XIX, a Europa estava imersa em grandes mudanças nas suas esferas sociais, políticas e econômicas, impulsionadas pelas Revoluções Francesa e Industrial. Essas mudanças, totalmente pautadas numa racionalidade científica e nas invenções tecnológicas aplicadas à produção, ao comércio e à economia, reconfiguraram por completo o panorama do século XVIII, e pavimentaram o caminho para o que viríamos chamar de Modernidade. A ascensão da ciência como um "motor do progresso" alterou radicalmente a forma como as sociedades ocidentais compreendiam o mundo, deslocando o foco da fé e da tradição para a razão e o empirismo.
Durante muitos anos, a ficção científica moldou suas narrativas em torno dessa lógica racional, completamente centrada nas ciências exatas e na tecnologia, apresentando visões de futuro dominado por esses desejados "avanços científicos" e pelas "dignas conquistas tecnológicas". A "ciência", nesse contexto, parecia confinada às esferas da física, da engenharia e da matemática, deixando de lado outras dimensões do próprio humano e do seu entorno.
E, embora a Modernidade tenha fornecido condições para um nascimento grandioso da ficção científica, ela não conseguiu pensá-la por completo ²
No final do século XX e início do século XXI, a ficção científica começou a se inclinar para abordagens mais humanistas, colocando o ser humano no centro das suas investigações. Foi em obras como Nova (1968), de Samuel Delany, e A Parábola do Semeador (1999), de Octavia Butler, que conseguimos perceber bem essa transição, em que as preocupações éticas, sociais e existenciais da humanidade tomaram a dianteira da especulação. Essas histórias marcam uma virada fundamental no gênero, que finalmente passa a questionar não apenas o impacto da tecnologia, mas também o papel da humanidade diante de seus próprios dilemas.
Essa evolução da ficção científica reflete, é claro, seu caráter especulativo. Isto é, ser um espelho das questões da sua própria época. E não demorou muito para que as questões ambientais emergissem como um tema central para a FC, inaugurando o subgênero conhecido como Ficção Climática, ou Cli-Fi. Diante de um mundo cada vez mais devastado pela degradação ambiental, a Cli-Fi surge como uma resposta artística às crises ecológicas, antecipando cenários de destruição que, infelizmente, começaram a se concretizar.
O desenrolar do século XXI, assim, vinham trazendo consigo ansiedades coerentes sobre o futuro do nosso planeta. E dentre os muitos medos que nos assolam, um dos mais reais é a destruição desenfreada do meio ambiente, que já não se limita ao campo da especulação ficcional, mas se manifesta de forma real, crua e dura em eventos cada vez mais frequentes. O debate sobre as mudanças climáticas, embora não seja recente, ganhou uma nova dimensão em 2004, quando o filme O Dia Depois de Amanhã (estrelado por Jake Gyllenhaal e Dennis Quaid) chegou às telas de cinema. Se as conferências científicas e os alertas dos especialistas não conseguiram despertar o público para a gravidade da situação, as imagens apocalípticas de uma Nova York engolida por tempestades e nevascas extremas deixaram uma marca poderosa na imaginação coletiva.
O impacto dessas representações na cultura popular foi imenso, mas, mais alarmante ainda, foi a concretização de muitas das previsões feitas pela Cli-Fi. Em 2024, o Brasil vivencia uma das piores crises ambientais de sua história recente. O Amazonas registrou 21,6 mil focos de queimadas, e o ano já é considerado o pior desde 1998 em termos de destruição por fogo (G1, 24 de set. de 2024). O Centro-Oeste e o Sudeste, regiões tradicionalmente menos afetadas, viram os focos de incêndio aumentar em mais de 200% em comparação ao ano anterior. Os impactos são catastróficos: estados em situação de emergência ambiental, cidades cobertas por fumaça, e um aumento dramático nas emissões de carbono.
Segundo a CAMS (Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais), desde o início de 2024, os incêndios florestais liberaram cerca de 180 megatoneladas de carbono, o que coloca este ano no mesmo patamar de 2007, quando o Brasil atingiu um recorde de emissões. Somente em setembro, mais de 60 megatoneladas de carbono foram emitidas, principalmente provenientes da Amazônia (CNN Brasil, 24 de set. de 2024). Esses dados são um lembrete de que as distopias que antes povoavam as páginas da ficção científica estão agora se desdobrando diante de nossos olhos.
As catástrofes ambientais que enfrentamos hoje ressaltam a presciência da Cli-Fi e a sua capacidade de nos alertar para a interconexão entre homem, natureza e cosmos. Então, por que não ficamos atentos à especulação?
A ideia de que somos meros locatários deste planeta, e não seus proprietários, subverte a antiga noção de dominação humana sobre a Terra e exige uma nova ética de cuidado e responsabilidade. A Cli-Fi, inicialmente, buscou trazer à tona essas questões, mas a longo prazo reestruturou a ficção especulativa como um todo, tornando impossível para a ficção científica contemporânea separar a humanidade do ambiente que a sustenta.
Quando percebemos que essa constatação já está plenamente presente no nosso imaginário ficcional, mas que ainda vivemos uma realidade marcada pela negação dos impactos ambientais que causamos, vemos o quanto a ficção científica não apenas reflete nossos medos e angústias, mas também como pode nos guiar para possíveis soluções.
Mas a pergunta que fica é: será que a ficção científica, com sua capacidade de engajar e sensibilizar, pode ser mais eficaz do que conferências, estudos e debates científicos para nos alertar sobre os perigos do aquecimento global? Talvez, na fusão entre arte e ciência, encontremos o verdadeiro caminho para a transformação, um que não pode ser guardado para o amanhã; um que necessita começar hoje.
Referências bibliográficas
1. MACHADO, C. A.. Filmes de ficção científica como mediadores de conceitos relativos ao meio ambiente. Ciência & Educação (bauru), 14(2), 283–294. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1516-73132008000200007. Acesso em: 20/10/2024.
2. OLIVEIRA, F. R. A ficção científica e a questão da subjetividade do homem-máquina. Com Ciência, 59. 2004. Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/2004/10/08.shtml Acesso em: 20/10/2024.
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