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Lacração, feminismo branco e representatividade nas telas

Por Bianca de Sousa



Cartaz do Movimento "Ele Não" em Outubro de 2018, onde mulheres lideravam manifestações contra eleição do candidato Jair Bolsonaro
Cartaz do Movimento "Ele Não" em Outubro de 2018, onde mulheres lideravam manifestações contra eleição do, até então, candidato Jair Bolsonaro. (Imagem: Sâmia Bonfim/Wikimedia)

O presidente deixa


Em 2018 e 2019, debates de inclusão e diversidade no Brasil estavam em todos os lugares, dentro e fora da internet. Nessa época, a polarização direita/esquerda do país era forte, principalmente com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Bolsonaro trazia em seu discurso e sua política uma retórica de extrema direita, a valorização do conservadorismo e rejeição às práticas ativistas. Em diversos momentos durante seu governo, pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, mulheres e PCDs foram alvo de ataques e/ou descriminalização. Até mesmo antes, na sua campanha eleitoral, o ex-presidente propagava discursos misóginos, homofóbicos e racistas. Longe de se originarem no governo Bolsonaro (Silva, 2010), os ataques a grupos minoritários nesse período apenas tiveram um representante.


Nesse período, uma crescente influência do neoconservadorismo e ideais de extrema direita estava entre nós (Siqueira et. al, 2020). Nos Estados Unidos, Donald Trump era o modelo conservador para os norte-americanos: polêmico, carismático para os seus e uma representação fiel do americano estereotipado, ele guiou sua campanha sob discursos patriotas e expressou desprezo às pautas sociais democráticas. Até o final de 2020 ele era o presidente dos EUA.


Quando a figura mais importante de um país, escolhida democraticamente pela população, usa sua voz para deslegitimar pautas sociais, o que se obtêm como resposta é uma dessensibilização das massas em relação às comunidades marginalizadas. Nessa época, aqui no Brasil, pessoas que buscavam respeito e inclusão pelas minorias foram apelidados de “turma da lacração”.


Para mulheres, os ataques de Bolsonaro começaram antes mesmo da sua eleição. Sob o discurso de qual seria o papel feminino na sociedade de acordo com os valores conservadores, o feminismo, que por muitos já era reconhecido como um termo pejorativo, foi ridicularizado por ideais misóginos à luz do dia, sem medo de serem mal vistas pela população e apoiados pela “liberdade de expressão”.



Lacração


Em 2019, Capitã Marvel (Dir. Anna Boden e Ryan Fleck), filme da Marvel Studios, foi estrelado pela vencedora do Oscar Brie Larson. Antes mesmo da estreia do filme, Brie sofria com ataques misóginos nas suas redes sociais devido as especulações sobre o filme ter um viés feminista e a personagem de Carol Danvers/Capitã Marvel no longa ser uma lacradora.

Citamos anteriormente nesta Coluna, como a influência das mudanças sociais reflete na maneira como as mulheres são representadas na ficção. Capitã Marvel não foi a única super heroína dos quadrinhos a ser adaptada para os filmes. Mulher Maravilha de 2017, (Dir. Patty Jenkins), foi uma grande referência para meninas e mulheres de todas as idades que sonhavam em ser uma heroína e, na época em que foi lançado, o filme foi bem recebido pelo público de uma forma geral.

Mas, não da mesma forma, Capitã Marvel sofreu represálias por ter um viés feminista e não ser exatamente o que o público, em sua maioria masculino, estava esperando. Entre as reclamações, os fãs desaprovam a falta de carisma de Brie, sua beleza e fidelidade com os quadrinhos. Uma das manchetes mais comentadas na época de divulgação do filme diziaQuem lacra não lucra: feminismo pode causar o primeiro fracasso da Marvel nos cinemas”. Mesmo assim, o filme faturou 1,131 bilhão de dólares.



Atriz Brie Larson em imagem de divulgação caracterizada como Capitã Marvel
Brie Larson caracterizada como Capitã Marvel. Sem sorriso. (Imagem: EW)

Após receberem o mínimo de representatividade, debates de gênero e equidade são apontados como “lacração”. Nesse sentido, militância e feminismo se tornam termos pejorativos, direcionados ao público que defende as pautas sociais de diversidade e inclusão. Contudo, reduzir racismo, homofobia e misoginia à “lacração” promove apagamento da relevância desses temas e traz consequências graves para os Direitos Fundamentais da sociedade. Movimentos sociais, o ativismo e o feminismo foram responsáveis por uma gama de avanços democráticos (Queiroz, 2019). Direito ao voto, liberdade de ir e vir e proteção contra violência doméstica são pequenos exemplos práticos de como as lutas sociais são importantes para construir um ambiente seguro para mulheres no nosso país.



Feminismo para quem?


Mesmo assim, não podemos descartar as problemáticas envolvendo para quem é a luta feminista. É evidente que o feminismo desde sua origem foi marcado pelo protagonismo branco de mulheres privilegiadas à frente dos protestos e debates que abriram as portas para direitos básicos de equidade e emancipação feminina. Contudo, esse protagonismo se dá pelo apagamento histórico-social de mulheres não brancas na luta feminista. À frente da luta contra o machismo e a desigualdade, as líderes reconhecidas pelo avanço dos movimentos e as conquistas para as mulheres foram guiadas por mulheres brancas, porque o racismo segregava representantes negras. Os reflexos desse apagamento estão presentes até hoje, quando mulheres marginalizadas são as que mais sofrem com a violência de gênero.


No Brasil, mulheres negras são a maioria das vítimas de violência doméstica e 62% dos casos de feminicídio. E no país que mais mata transexuais no mundo, a maioria das vítimas de assassinato LGBTQIA+ são mulheres trans e negras.

“O racismo precisava ser eliminado para que as mulheres negras pudessem ser reconhecidas como uma voz igual à das mulheres brancas na questão dos direitos das mulheres”, disse Bell Hooks em seu livro E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e Feminismo, lançado originalmente em 1981, e fala sobre os movimentos feministas do século XIX nos EUA e a importância de recorte do feminismo para mulheres negras.


Inspirado no discurso da ativista Sojourner Truth em 1851, o livro de Bell Hooks expõe a a participação da luta feminista de mulheres negras para as mulheres negras, e as consequências os agravantes do racismo quando atrelado ao sexismo.


A série de televisão Pose, com 3 temporadas, foi lançada em 2018 e narrava o cotidiano de uma comunidade LGBTQIA+ na década de 1980-90. A maioria das personagens era composta por mulheres trans e negras. Explorando debates como pioneirismo LGBT na cultura ballroom, prostituição de mulheres trans, HIV e o amor romântico para travestis não brancas, Pose traz um contexto histórico-cultural de representatividade para diversos públicos marginalizados através de um elenco altamente diverso e a luta de mulheres trans e negras na busca por seus direitos. Por seu trabalho em Pose, MJ Rodriguez, a protagonista da série, foi a primeira mulher trans a ganhar o Globo de Ouro.


MJ Rodriguez, Indya Moore e Angel Bismark Curiel caracterizados em seus personagens na 3ª temporada de Pose
A série Pose abordou a luta da comunidade LGBTQIA+ nos EUA na década de 1980-90 (Imagem: FX Productions, LLC)


No mundo real esse problema existe?


Para além de debates em fóruns online e a representação feminina na ficção, podemos afirmar que existe um impacto positivo em expor os debates de pautas sociais à população, mesmo quando são deslegitimadas. Ultrapassando as barreiras entre a ficção e a realidade, cada vez mais as obras devem abordar questões de representatividade. Nesses casos, quanto mais recortes sociais, maior o impacto. As obras devem se aproximar de pessoas que nem sempre veem rostos como os seus em papeis de destaque, estrelando filmes de super herói e como protagonistas de uma saga de livros.



Atriz Leah Jeffries caracterizada como Annabeth na série Percy Jackson e os Olimpianos.
Atriz Leah Jeffries sofreu ataques racistas na internet após ser escalada como a personagem Annabeth Chase na série Percy Jackson e os Olimpianos, do Disney+ (Imagem: Divulgação Disney+)

Rick Riordan, autor da saga de livros Percy Jackson e os Olimpianos veio em defesa da atriz Leah Sava Jeffries, escalada como Annabeth na adaptação live action da série no Disney+. Annabeth, descrita como uma personagem branca nos livros, está sendo interpretada por uma atriz negra. Riordan publicamente defendeu Leah dos ataques racistas após sua escalação: “Você está julgando a adequação dela para o papel única e exclusivamente pela sua aparência. Ela é uma garota negra que interpreta alguém que foi descrito nos livros como branco. Isso é racismo”. O autor, que se apoiou na personalidade da personagem para a escalação, afirma que Leah foi a “escolha perfeita” pelo seu talento e energia entregue à personagem. “Ela será um modelo para as novas gerações de meninas que verão nela o tipo de heroína que desejam ser”, completou.


Escalar atrizes negras em papeis de destaque em obras audiovisuais ajuda a trazer uma percepção de quantas são mulheres negras ocupando cargos de liderança nas empresas. Da mesma forma, explorar a representatividade de mulheres transexuais, bissexuais e lésbicas em horário nobre da televisão aberta do país abre portas para aceitação de filhas, netas e familiares LGBTQIA+ na vida real.



Representatividade nas telas e exposição de pautas sociais na ficção, quando possuem uma abordagem fundamentada na luta política de grupos minoritários, se tornam ponte poderosa para transformação da sociedade onde, às vezes, a ficção é apenas um reflexo da realidade.




REFERÊNCIAS


LUNA, N. Conservadorismo Na Política No Governo Bolsonaro: Novas Articulações, Valores Religiosos E Pauta De Costumes. v. 17, n. 6, p. 1–29, 2023.

QUEIROZ, E. DE F. C. Os Movimentos Sociais e o Ativismo no Brasil no Embate com o Governo de Extrema Direita de Jair Bolsonaro. Revista Movimentos Sociais, v. 4, n. 06, p. 114–153, 2019.

SILVA, S. Preconceito e Discriminação: As Bases da Violência Contra a Mulher. Psicologia, Ciência E Profissão. v. 30, n. 3, p. 556–571, 2010.

SIQUEIRA, M. E. D. C. et al. Uma análise da onda do conservadorismo no Brasil: possíveis consequências aos direitos fundamentais. Jornal Eletrônico Faculdades Integradas Vianna Júnior, v. 12, n. 1, p. 22–22, 28 maio 2020.


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