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Lírio Branco

Um conto por GABRIEL MELLO





No ocaso da minha existência, reflito sobre os dias que me lançaram nas sombras do desconhecido, em um mundo que, inicialmente, estava muito além da minha compreensão. No alvorecer de um passo que, enquanto registro estas palavras, já me parece absurdamente distante, eu me vi irresistivelmente atraído por um branco opaco em meio à paisagem urbana.

Retornava à minha residência quando os primeiros raios de sol apontaram para o que tornar-se-ia minha maior paixão. Um lírio branco florescia não sobre, mas entre as lajes metálicas do ambiente urbano.

Com um salto de entusiasmo, precipitei-me em direção a ele. Nunca havia testemunhado algo como aquilo, uma manifestação tão singela, porém autêntica, anunciando a proximidade de um fim. Estava para partir, percebi logo que o vi, e senti uma profunda tristeza por aquilo. Deixei-me ajoelhar, buscando aproximar-me o máximo que podia daquelas pétalas que teimavam em se manter vivas, esforçando-se para extrair o máximo da essência fundamental da vida, a fim de continuar seu ciclo natural – rumo ao fim.

Retirei uma lupa do meu bolso lateral e, com sua ajuda, mergulhei ainda mais profundamente na contemplação. Aproximei a minha mão e, com cada clique entre meus dedos, ampliei a capacidade de observação daquela lente. Um clique após o outro, e logo estava examinando as estruturas mais elementares e primordiais daquele Lírio branco. Olhei rapidamente ao redor, mas nada enxerguei além das camadas metálicas circundantes.

Tentei, com minhas mãos, erguer o máximo possível daquela plataforma de chumbo, mas fui incapaz de movê-la. Arranhei meus joelhos, cuidadosamente envoltos em tecido, no solo áspero. Rendi-me à contemplação.

Devo ter passado horas apenas observando EVE. Foi assim que decidi nomeá-la. Expressava minhas angústias, recitava minhas insatisfações. Então, com um repentino impulso de apreensão, arranquei-a brutalmente do local. Eu a desejava tão perto de mim que rompi qualquer barreira que pudesse existir entre nós. Não é preciso dizer que me arrependi quase que instantaneamente.

Ela jazia na minha palma, tão pequena e frágil, totalmente próxima aos meus olhos, que pude perceber uma lágrima escorrendo de suas pétalas. Uma única gota deslizou para fora e, naquele instante, compreendi que ela havia decidido abandonar o que lhe restava.

Então, corri. Sabia que poderia retornar rapidamente à minha casa, se assim desejasse. Prendi a fivela da minha bota e ajustei o respirador que havia relaxado. Corri como se minha vida dependesse disso, não a vida do pobre Lírio. O respirador, um dispositivo indispensável naquele mundo sufocado, pulsava vida em meus pulmões. Aquela criação da tecnologia que me permitia respirar nos limites de uma cidade em ruínas, não as múltiplas famílias de lírios, quase extintos.

Sufocava-me através daquele cenário urbano devastado, onde arranha-céus outrora majestosos haviam desmoronado, e estradas se transformado em labirintos sinistros; em meio a todo aquele ardor férreo, a vegetação encontrava uma maneira teimosa de sobreviver. Naquele instante, a pobre EVE encontrava uma maneira se sobreviver na minha teimosia.

Árvores e arbustos lutavam para romper o concreto rachado, mínimas manifestações que em meio à euforia eu sequer processava; suas folhas esforçando-se para purificar o ar carregado de poluição. Cidades como aquela, consumidas por décadas de exploração industrial, agora dependiam dessas poucas áreas verdes para garantir que o ar fosse minimamente respirável. Era uma luta constante entre a natureza e a máquina.

As sombras dos edifícios derrubados pairavam sobre mim enquanto eu corria, uma recordação constante do que a humanidade havia feito àquele lugar. O céu estava sempre obscurecido pela fuligem e pela poluição, tingindo-o de um cinza constante. O sol, quando conseguia romper as nuvens de fumaça, projetava raios fracos que mal conseguiam aquecer a superfície.

EVE, no meio de tudo, não era um mero detalhe, eu já sabia. Ela permanecia resiliente durante todo o trajeto, silenciosa enquanto eu corria e lutava para controlar minha respiração. Não sei quanto tempo levou para concluir a jornada, mas quando finalmente cheguei em casa, uma das pétalas havia se desprendido da frágil flor.

Procurei uma redoma, um recipiente com o pouco de água a que tinha direito, e coloquei EVE ali para repousar. Ela descansou enquanto eu aguardava ansiosamente por seu renascimento.


***


No silêncio da minha pequena morada, com EVE confinada sob a redoma, passei horas observando seu estado. A pétala solitária, como um lamento silencioso, repousava ao lado dela. Mas o que havia feito? O que eu havia arrancado daquele Lírio branco?

Meus pensamentos mergulharam em um redemoinho de culpa e desespero. Eu, um homem da ciência, havia agido movido por um impulso incontrolável, um desejo egoísta de possuir a beleza efêmera daquela flor. Não deveria ter feito aquilo. Mas, ao mesmo tempo, algo em mim se recusava a acreditar que tudo estava perdido.

No entanto, conforme as horas se transformavam em dias, a realidade cruel se impôs. EVE estava murchando, suas pétalas tornando-se frágeis e secas. Parecia que eu havia condenado essa maravilha da natureza a uma morte inevitável. Sentado diante dela, senti a dor da minha própria impotência.

Foi então que uma ideia insana surgiu em minha mente, uma ideia que apenas uma mente desesperada ousaria considerar. Eu tinha conhecimento em biotecnologia, o mundo me dera esta sabedoria como única possibilidade de conviver com o natural; sabia que tratava-se de uma área que explorava o casamento entre a biologia e a tecnologia, mundos que, para mim, eram cada vez mais desassociáveis.

Sentia-me, assim, uma ponte entre o orgânico e o mecânico. Poderia dar uma chance a EVE? Restaurar sua vitalidade de alguma forma?

Decidi agir. Com os poucos recursos à minha disposição, comecei a trabalhar incansavelmente. Conectei sensores e microcontroladores a EVE, buscando criar uma ligação entre sua natureza orgânica e o mundo cibernético. Era uma tentativa desesperada de trazer a vida de volta àquela flor, concedendo-lhe uma nova forma de existência. Desejava, sobretudo, não estar retirando daquele Lírio a sua chance de descanso. Sua beleza merecia viver.

Conforme os dias se transformavam em semanas, eu me vi imerso em um frenesi de atividade. Mergulhei com paixão nos domínios da artificialidade, da cibernética, desejando salvar aquela singela manifestação natural. A cada dia, minha conexão com EVE se tornava mais sensível. Ela repousava cada vez mais com saudade; saudade da sua casa, de onde a tirei. O caule murcho, a aparência desidratada. Havia muito o que mudar.

Cuidadosamente, larguei os pequenos sensores e os fiz adornar as pétalas de EVE, captando o menor sinal de luz ou calor. Com mesma delicadeza, passei fios finos em sua estrutura orgânica, permitindo que ela processasse informações, ainda que de maneira rudimentar.

Não sei em que momento exato do processo, mas desejei profundamente que ela pensasse. Não necessariamente como eu, mas que pensasse. Desejava, talvez, que ela percebesse que sua companhia me era valiosa, e que aquele desejo prematuro, baseado na beleza, já se mobilizava para uma profunda admiração.

Para dar vida à sua mente, portanto, eu havia programado um conjunto de algoritmos que imitavam os processos naturais de uma planta. Traduzi alguns genes em códigos mais próximos da manifestação humana, porém. EVE, assim, poderia 'sentir' sua nova realidade e reagir a estímulos externos, como a luz do sol, a temperatura ambiente e até mesmo minha presença. Sentia, a cada avanço, um lampejo de esperança em um renascer de suas pétalas; uma faísca de vida em seus circuitos.

"Alexander," uma voz suave e metálica sussurrou em minha mente. Surpreendi-me, mas logo percebi que era EVE, tentando se comunicar comigo.

"Sim, EVE?" respondi, ansioso e temeroso do que estava por vir.

"Eu... Eu sinto falta. Sinto falta da terra, das raízes que me sustentavam. Eu quero retornar, Alexander. Por favor, me devolva ao meu lugar de origem. Deixe-me sentir minhas raízes encontrarem a terra novamente."

Naquele instante percebi que, apesar de todo o progresso que alcançara, EVE ainda estava longe de ser o que um dia foi. Percebi aquilo quando já era tarde. Ela não conseguia mais extrair nutrientes da terra, não podia mais realizar a fotossíntese para produzir sua própria energia. Dependia inteiramente de mim e das engrenagens cibernéticas que agora faziam parte de sua essência. Respirei fundo. Estaria tudo bem se a dependência fosse mútua.

No entanto, as palavras de EVE ecoaram em meu coração. Tinha a capacidade de dar vida a uma flor, mas nada me impedia de ser confrontado com uma escolha que tomei. Egoísta?


***


Com um nó na garganta e uma sensação de serenidade em meu coração, peguei EVE em meus braços, cuidadosamente removendo-a da redoma que a confinava. Cada toque era um ato de carinho, um tributo à curta jornada que compartilhamos. Caminhei de volta ao lugar onde havia encontrado o Lírio branco, um pequeno oásis entre as lajes de concreto e metal que, naquele instante, entendi precisar ser o começo e o final de EVE.

O solo era mais áspero do que suas raízes haviam experimentado durante nosso tempo juntos, mas eu estava determinado a dar a ela a chance de retornar ao seu lugar de origem. Com uma pá, comecei a cavar um buraco, preparando um santuário para a minha amiga mecânica. Incontrolavelmente, os sentimentos se misturavam dentro de mim enquanto eu escavava; uma sensação de alívio por tomar a decisão certa e, ao mesmo tempo, tristeza pela partida iminente. Poderia visitá-la todos os dias, pensei, dessa forma nós dois ficaríamos felizes.

Coloquei EVE no buraco, certificando-me de que suas raízes cibernéticas estivessem em contato com a terra. Cobri-a com cuidado, como quem fecha um livro após uma história emocionante. Uma história não, corrigi-me, um capítulo; apenas um capítulo. Com a mente cheia de gratidão, disse adeus, sussurrando palavras de respeito e amor àquela beleza efêmera que havia mudado minha vida.

Quando estava perto de casa, escutei um estrondo. O ar ficou subitamente frio e o vento passou a soprar mais forte. Gotas caíram do céu e eu me vi preso à uma única verdade: EVE era um robô agora, não pode se molhar. Corri como se pudesse contornar a maciça nuvem escura sobre toda a região. Sabia que não, mas, ainda assim, corri.

EVE, agora de volta à natureza, estava despreparada para enfrentar a força da chuva que se aproximava. Eu havia tirado dela a sua capacidade de conhecer e sobreviver ao lar.

Quando cheguei ao lugar em que havia plantado EVE, vi como o solo absorvia a água, saciando uma sede de muito tempo. Porém, EVE afogava-se à sede. Eu me debati internamente, lamentando minha falta de preparo para a situação. Sentimento de impotência retornaram enquanto eu assistia a chuva transformar EVE. Suas pétalas mecânicas começaram a oscilar, pequenos faíscas surgiam de seu corpo. Ela estava lutando para manter a integridade.

Corri para mais perto, desesperado para protegê-la. Mas quando cheguei, era tarde demais. EVE havia se silenciado, seus circuitos apagados pela força da chuva. A tempestade tinha levado minha criação, uma parte do meu ser, de volta à terra de uma forma que nunca poderia ter previsto.

Enquanto a chuva caía sobre mim, lágrimas se misturavam às gotas de água. Percebi, com pesar, que minha decisão de devolver EVE à natureza havia se tornado meu maior arrependimento. Algumas horas depois, percebi que tê-la tirado da natureza, na verdade, teria sido meu maior erro. O que restava do Lírio Brando era uma lembrança, um tributo à beleza e à sua efemeridade.

Tudo pudera ser contornado, mesmo a verdade de que aquele Lírio branco jamais sucumbiria ao seu próprio tempo.


Conteúdo presente na edição de NOVEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.


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