Você já ouviu falar sobre Mary Shelley? E sobre a sua mãe?
Mary Shelley nasceu em 1797, filha de Mary Wollstonecraft, uma pioneira do feminismo e autora de "A Vindication of the Rights of Woman", e William Godwin, um filósofo político de renome. Desde cedo, Shelley foi imersa em um ambiente intelectual que enfatizava a igualdade, a justiça social e a educação. As ideias de Wollstonecraft sobre a emancipação das mulheres e a importância da educação tiveram um impacto profundo na jovem Mary, inspirando-lhe um senso de autonomia e questionamento crítico das normas sociais.
A influência de Mary Wollstonecraft sobre sua filha é evidente tanto na vida quanto na obra de Mary Shelley. Wollstonecraft defendia a educação e a emancipação das mulheres, acreditando que a igualdade só poderia ser alcançada através da educação e da reforma social. Mary Shelley internalizou esses valores, o que é refletido em suas personagens femininas fortes e em sua exploração de temas de poder, controle e autonomia. A autora Charlotte Gordon traz em seu livro “Mulheres Extraordinárias: As Criadoras e a Criatura” a seguinte reflexão:
"Como poderia uma mãe que morreu dez dias depois de dar à luz ter causado tamanho impacto sobre a filha? Entretanto, por mais inusitado que pareça, a influência de Wollstonecraft sobre a filha foi profunda. Sua filosofia radical moldou Shelley, inflamando-lhe a determinação de se tornar alguém e de criar uma obra-prima exclusivamente sua.
"Ao longo da vida, Shelley leu e releu os livros da mãe, muitas vezes decorando suas palavras. Havia um enorme retrato de Wollstonecraft na parede do lar onde Mary Shelley passou a infância. A garota o analisava, comparando-se com a mãe, na esperança de encontrar semelhanças. O pai de Mary Shelley, bem como os amigos dele, apresentavam Wollstonecraft como um paradigma de virtude e amor, enaltecendo sua genialidade, bravura, inteligência e originalidade."
Essa profunda conexão com a mãe, apesar de sua ausência física, ajudou a moldar a identidade de Mary Shelley e seu compromisso com os ideais feministas. Shelley não só internalizou os princípios de igualdade e educação defendidos por Wollstonecraft, mas também os expandiu em sua própria obra. Em "Frankenstein", a sua mais difundida obra, Shelley questiona as dinâmicas de poder e controle, refletindo sobre as consequências de uma sociedade que marginaliza e silencia vozes, especialmente as femininas.
A forte presença do legado de Wollstonecraft em sua vida e trabalho evidencia como Shelley foi influenciada pela imagem idealizada de sua mãe como uma figura de emancipação e resistência, inspirando-a a desafiar as expectativas da época e a construir uma carreira literária distinta e influente. Essa herança intelectual e emocional é fundamental para compreender não apenas a obra "Frankenstein", mas também as contribuições gerais de Shelley para a literatura e para o pensamento feminista.
O surgimento de "Frankstein"
Em maio de 1816, Mary Godwin, Percy Shelley, e seu filho viajaram para Genebra com Claire Clairmont, onde planejavam passar o verão com o poeta Lord Byron, cujo caso recente com Claire a tinha deixado grávida. O grupo chegou em Genebra em 14 de maio de 1816, onde Mary passou a se chamar de "Sra. Shelley". Byron se juntou a eles em 25 de Maio com seu jovem médico, John William Polidori, e alugou a Villa Diodati, perto do Lago de Genebra na vila de Cologny; Percy Shelley alugou uma pequena construção chamada Maison Chapuis, próximo à margem do rio. Passaram seu tempo escrevendo, com passeios de barco no lago, e conversando até tarde da noite.
Entre outros assuntos, a conversa virou-se para as experiências do filósofo natural e poeta Erasmus Darwin, do século XVIII, que disse ter animado matéria morta, dando vida a um cadáver, ou a partes de um corpo. Sentados em torno de uma fogueira na Villa de Byron, os companheiros também se divertiam lendo histórias alemãs de fantasmas, fazendo com que Byron sugerisse que cada um escrevesse o seu próprio conto sobrenatural. Pouco depois, em uma inspiração, Mary Godwin concebeu a ideia de Frankenstein:
Eu vi o pálido estudante de artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que ele tinha reunido. Eu vi o fantasma hediondo de um homem estendido e, em seguida, através do funcionamento de alguma força, mostrar sinais de vida, e se mexer com um espasmo vital. Terrível, extremamente assustador seria o efeito de qualquer esforço humano na simulação do estupendo mecanismo de Criador do mundo. — Mary Godwin.
"Frankenstein" foi escrito durante um período de transformação social e tecnológica, marcado pela Revolução Científica e pela Revolução Industrial. Essas mudanças levantaram questões sobre o papel da ciência e da tecnologia na sociedade, e os limites éticos do conhecimento humano. A obra de Shelley reflete essas inquietações, questionando as consequências de ultrapassar os limites éticos e morais da ciência.
O movimento romântico, com seu foco na emoção, na natureza e na introspecção, também influenciou a escrita de Shelley. Essa corrente cultural serviu como um contraponto ao crescente domínio da racionalidade e da ciência, proporcionando um cenário para a exploração dos dilemas éticos e emocionais que permeiam "Frankenstein".
E não só isso. Mary Shelley enfrentou uma série de perdas devastadoras ao longo de sua vida. A morte de seus filhos foi particularmente traumática, e essa tragédia contribuíu para um sentimento de desolação e desesperança, temas que se refletem na narrativa de "Frankenstein". O seu livro pode muito bem ser interpretado como uma expressão literária do tumulto emocional, explorando a criação e o abandono, temas que ecoam a experiência de Shelley de dar vida (no caso de seus filhos) e de enfrentar a morte e a separação.
O monstro, uma criação rejeitada e isolada, espelha o próprio sentimento de exclusão e alienação de Shelley, tanto social quanto emocional.
Por isso eu afirmo: "Frankenstein" de Mary Wollstonecraft Shelley é mais do que uma história de horror gótico; é uma profunda meditação sobre os desafios éticos da ciência, a complexidade das relações humanas e a busca por identidade e aceitação. Tudo isso alinhado ao pessoal da autora, como uma mulher que teria de enfrentar seus próprios monstros.
Assim, Mary Shelley, Goodwin e Wollstonecraft, com toda a sua história de resiliência e eterna busca por afeto, criou um monstro moldado à sua imagem. Ela não só contribuiu para a literatura gótica e de ficção científica, mas também deixou um legado duradouro como uma voz na discussão sobre ética, responsabilidade e o papel da mulher na sociedade. Sua obra, nascida de um período de grande turbulência pessoal e social, permanece uma poderosa crítica à sociedade e um testemunho da persistência e criatividade da autora.
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