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Melodias Mitológicas: A Transformação da Mitologia Grega nos Musicais e na Cultura Pop

Julia de Alencar, colunista de Mitologia









As adaptações dos mitos gregos não são nenhuma novidade, considerando que essas histórias são base para contos de fada famosos como “A Bela e A Fera”, de Madame de Villeneuve, ou mesmo para clássicos literários como “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare. As mitologias em geral são fonte inesgotável de inspiração para múltiplas produções artísticas que ultrapassam as sete artes e suas subcategorias. Mas a questão é que mesmo estas fontes estão sujeitas a interpretações errôneas ou a adaptações “injustas” dos Deuses e da cultura helênica. E é sobre esse tema que me propus a falar hoje, dando um foco principal aos musicais.


A cultura pop tomou para si as mitologias de várias culturas e, com elas, tomou grandes liberdades. Um grande exemplo é a representação dos Deuses Nórdicos pela Marvel. Há muitas pessoas leigas sobre a religião nórdica, sujeitas a acreditar que a representação de Chris Hemsworth do Deus Thor e a de Tom Hiddleston do Deus Loki sejam fidedignas à sua origem mitológica, quando esse não é o caso. Não há semelhanças nem ao menos na aparência dos Deuses e dos atores. 


Contudo, uma das mitologias mais prejudicadas, senão a mais prejudicada, talvez seja a mitologia grega. Justamente por ser a mais popular. Autores passados tomaram muitas liberdades com suas traduções dos mitos, fizeram novas versões de acordo com a própria vontade e com a mensagem que queriam passar; enquanto autores contemporâneos utilizam dessas adaptações, traduções e até de outras mitologias para tentar fazer uma representação dos Deuses gregos. Daí surgiram os arquétipos dos Deuses, as representações estereotipadas de suas personalidades e de suas relações com seus colegas de panteão. 


A adaptação do autor Rick Riordan, por exemplo, em sua série de livros “Percy Jackson e Os Olimpianos”, é muito rica, mas ainda peca em representar de forma autêntica as divindades do panteão grego. Ele as estiliza bastante, ora para encaixar sua versão dos Deuses na mesma caixinha que a cultura pop os encaixou com seus arquétipos, ora para adaptá-los à sua própria perspectiva dos mitos. Mas, apesar de não ser uma produção tão verídica, está longe de ser tão estereotipada e prejudicial para a cultura helênica quanto outros exemplos presentes neste texto. 


O musical “Hércules", adaptado do longa-metragem de animação da Disney, é um excelente exemplo de produção estereotipada. Além das mudanças já esperadas em qualquer adaptação de mito grego para produção artística, o filme e o musical distorcem totalmente o mito de Héracles. O tornam um Deus desde o nascimento; trocam a antagonista original do mito, a Deusa Hera, pelo Deus Hades e a tornam sua mãe biológica. Mas a pior parte dessa adaptação do mito é o fato de tantos elementos culturais romanos serem utilizados como se fossem parte da cultura grega, é como se para a maioria, porque ambas as culturas têm algumas semelhanças devido à colonização do povo romano sobre o povo grego, as duas culturas fossem uma só. O filme e o musical são recheados de diálogos muito eficientes em entreter pessoas de todas as idades, são recheados de músicas maravilhosas e referências inteligentes à cultura pop, mas quanto a representatividade deixa muito a desejar. 


Estereótipos são muito comuns em representações culturais em geral, não necessariamente voltadas ao viés religioso e mitológico. Um excelente exemplo é a franquia “Casamento Grego” escrita e estrelada pela atriz canadense Nia Vardalos. Numa tentativa de tornar o seu conteúdo mais familiarizável, ela usou de muitos artifícios cômicos e a cultura grega ficou em segundo plano. Foram usados muitos estereótipos comuns sobre famílias de países de origem romântica; parentes que falam alto, piadas espalhafatosas, gosto peculiar para moda e um machismo intrínseco velado por uma suposta tradicionalidade. O fator cultural foi estereotipado e utilizado majoritariamente como um alívio cômico. O autor Aliki Efstathiou, também de ascendência grega, enfatizou em seu texto “A Matter of Concern for the Greek-American Community” que caso removidos os poucos elementos superficiais da cultura grega presentes no filme, ele não passaria de uma história sobre uma família mal-educada e estúpida. 


O musical “Mamma Mia!” é uma história feita em homenagem à discografia do grupo pop sueco ABBA. O cenário escolhido para a trama é uma ilha fictícia chamada Kalokairi, que é conhecida pelos cidadãos locais como um local sagrado à Deusa Afrodite. Com um enredo leve e músicas animadas, o musical traz poucas referências à mitologia, sendo as suas principais a presença do herói enfrentando desafios épicos, e a jornada do herói em geral, enfrentada pela dupla de protagonistas: Donna e Sophie Sheridan, mãe e filha. Na adaptação cinematográfica houve um elemento adicional que fazia referência à mitologia, o elenco de apoio era uma representação dos Deuses, auxiliando à Donna de uma forma bem contrária às vontades da protagonista, sendo a principal razão pela qual ela consegue seu “felizes para sempre” com um dos três potenciais pais de sua filha: o arquiteto boa pinta, Sam Carmichael.


Em "Hadestown” e “EPIC", musicais mais recentes, temos propostas semelhantes com algumas diferenças pontuais. São adaptações bastante fiéis no que se propõem a fazer, ou seja, adaptar um único mito cada com a maior riqueza de detalhes possível. Em “Hadestown”, adaptação do mito de Orfeu e Eurídice, houve uma escolha estética de ambientação e figurino diferentes: nela Deuses e mortais vivem numa realidade steampunk, a música é inspirada no jazz e no blues de Nova Orleans. Enquanto em EPIC, que é um musical ainda em desenvolvimento, houve uma mudança mais pontual quanto aos personagens. Os Deuses mantêm a mesma posição que tinham na Odisseia de Homero, enquanto aliados ou inimigos de Odisseu. Suas personalidades, porém, são levemente modificadas pela perspectiva que o autor, Jorge Rivera-Herrans, obteve ao ler a obra original. Nas duas adaptações foram feitas escolhas que modificam as histórias originais, sem alterar a essência delas, sendo assim as duas melhores adaptações entre todas as citadas neste ensaio. 


Como já foi pontuado na matéria do dia 02/04 da coluna de Cultura Pop (você pode acessar o texto aqui), há adaptações que reimaginam estas histórias clássicas adicionando um toque pessoal do autor à mistura, outras têm a preocupação em ser mais coerentes e fidedignas tanto ao mito ao qual se inspiram, quanto à cultura que replicam. Uma adaptação deste tipo só se torna verdadeiramente problemática na opinião desta autora, quando desrespeita a cultura que propunha homenagear, e infelizmente, esta é a realidade da maioria das adaptações de grande alcance. Representatividade é uma pauta que só tem sido levada a sério há pouco e para que continue a ser levado a sério é necessário refletir sobre conteúdos e produções mais antigas, que se apropriaram de múltiplas culturas e reforçam estereótipos. Mas é necessário também reconhecer o esforço de produções mais recentes, tanto em serem inclusivas, quanto em representar o grupo que escolheu representar com dignidade e respeito, seja ele qual for.


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