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Muçulmanas punks e anti-orientalismo em "We Are Lady Parts"

Gaia Jutz











A série britânica We Are Lady Parts (2022–), dirigida por Nida Manzoor, acompanha um grupo de mulheres muçulmanas que constroem a banda de punk Lady Parts. A série, que conta com duas temporadas até o momento, traz luz a problemáticas relacionadas ao orientalismo e os limites da representação na mídia, mostrando personagens que convivem com a religião mantendo sua autenticidade e sua revolta com bom humor.


We Are Lady Parts (Foto: Divulgação peackock)
We Are Lady Parts (Foto: Divulgação peackock)

Enquanto a primeira temporada se encarrega de apresentar as personagens, seu ponto de partida, suas particularidades e a busca pela coesão da banda, o desenvolvimento da segunda temporada caminha para uma maturidade crítica sobre o teor das letras das músicas, as plataformas possíveis para impulsionar uma carreira na música e as imposições da indústria musical sobre os limites do que pode ser dito sob a rédea curta de uma grande produtora, além de focar mais em questões pertinentes à identidade racial e ao orientalismo.



Orientalismo e estigmatização


O orientalismo, segundo Said (1990), é um termo cunhado para descrever um sistema eurocêntrico de conhecimentos sobre o Oriente para beneficiar interesses econômicos e políticos de exploração colonial da região. Said defende que a definição de um mundo “ocidental x oriental” é uma construção histórica que fortalece um pensamento binário entre civilização e barbárie (ou normalidade e anormalidade) e recai pesadamente sobre as culturas árabes e países de maioria muçulmana, com propaganda desenfreada que iguala o Islã ao terrorismo, sem nuances, e contribui para políticas de eugenia.


Nesse sentido, a imagem das mulheres muçulmanas na ótica orientalista é carregada de violência e supremacia branca, pois renega aspectos da cultura e da religião que não são hegemônicas na “civilização ocidental” e coloca as mulheres muçulmanas em uma posição de inferioridade onde só poderiam ser salvas pela luz da cultura ocidental


Esse aspecto é, muitas vezes, defendido por correntes feministas eurocêntricas, que compactuam com uma leitura orientalista e posicionam as mulheres muçulmanas como mais oprimidas e possivelmente perigosas para o avanço da autonomia feminina, baseando a ideia de autonomia em uma cultura deslocada e que é, também, patriarcal e misógina.


Um dos grandes operadores do imaginário construído sobre o Oriente Médio é a mídia de massas, como afirma Said (1995):


O medo e o terror induzidos pelas imagens desproporcionais do ‘terrorismo’ e do ‘fundamentalismo’ (...) aceleram a subordinação do indivíduo às normas dominantes do momento. Isso vale tanto para as novas sociedades pós-coloniais quanto para o Ocidente em geral e os EUA em particular. Assim, opor-se à anormalidade e ao extremismo embutidos no terrorismo e no fundamentalismo (...) significa também defender a moderação, a racionalidade, a centralidade executiva de uma moralidade vagamente designada ‘ocidental’.



We Are Lady Parts e críticas à islamofobia


A manager da banda, Momtaz, usa um niqab (véu que cobre o corpo todo exceto pelos olhos) a todo tempo, por escolha pessoal motivada pela fé e a cultura, sem que isso limite a sua personalidade. Aqui, não me cabe dizer que a imposição fundamentalista do niqab não é uma ferramenta de controle de corpos femininos, muito menos que escolher usá-lo seria uma forma de emancipação, mas trazer a perspectiva de que as vestimentas também fazem parte da identidade cultural muçulmana e que todas as culturas estão em constante movimento, integrando elementos novos e modificando seus próprios. 


Nesse movimento, tudo é significado e ressignificado pelos agentes dessa cultura e, para uma mulher muçulmana que tem a sua própria cultura demonizada por todo tipo de preconceito orientalista, usar suas vestimentas tradicionais – especialmente na Europa – pode ser uma questão de afirmação da própria existência e identidade. E, ainda que o niqab (assim como a burca) tenha sido transformado (pelo ocidente) em um símbolo da opressão muçulmana, não é uma imposição de todas as vertentes islâmicas.


Atualmente, há políticas anti-imigração na Europa que proíbem o uso de niqab e da burca, como na França, com leis islamofóbicas que tem sua constitucionalidade permitida pelo princípio da laicidade, que a antropóloga Francirosy Campos Barbosa (2023) defende que “considera que toda mulher que usa burca ou niqab é submissa e deve ser ‘salva’ pelos ocidentais, proposição que é tão violenta quanto obrigá-la a usar tal vestimenta. É importante dizer que o véu não subtrai o pensamento, e a ausência dele não é significado de autonomia, embora todo discurso reforce essa ideia”.


A série mostra os olhares de desaprovação na rua e a crise de identidade das personagens, como a baixista e artista visual Bisma, que é uma mulher negra muçulmana que deseja ressaltar sua cultura negra no cabelo, mas passa pelo questionamento sobre estar em público sem o hijab: ela sabe que sua fé e dedicação à religião não mudaria, mas teme os comentários ao seu redor.


A baterista Ayesha também passa por um conflito de identidade relacionado a sua sexualidade. Ela não se questiona sobre sua orientação sexual e tem relacionamentos homoafetivos, mas não deseja que sua sexualidade seja pública, o que sua namorada branca não compreende por barreiras culturais, esperando que Ayesha, por ser rebelde e punk, renuncie a todos os aspectos da sua cultura.


Na primeira temporada, uma personagem importante é apresentada para mostrar as diferenças culturais entre as mulheres da banda e a cultura branca na qual elas estão inseridas na Inglaterra. A influencer que se torna promoter de Lady Parts busca divulgar a banda com uma postura anti-islâmica, sendo que a subversão delas não é contra a religião. Entre as diferenças culturais, a sexualidade de Ayesha é usada como token para que ela seja uma diva queer, o que não é do desejo da personagem.



Mídia e imperialismo cultural


Além das questões relacionadas à identidade, também há uma crítica voltada para a mídia. Um momento importante de quebra com a espetacularização do que é ser subversivo – aqui cabe um spoiler que não vai estragar a experiência – é quando a personagem-narradora, Amina, questiona: quão subversivas somos, realmente, se estamos sendo representadas por um grande selo comercial?


Quando iniciam os questionamentos sobre esse espaço na indústria musical e o teor das letras das músicas, a banda é apresentada a uma barreira, mas a série também enfrenta a mesma barreira: há um limite sobre o que é possível criticar enquanto um produto cultural dentro dessa grande indústria.


Essa metalinguagem presente na segunda temporada me deixou fascinada, pois faz uma crítica muito pertinente quando coloca que há um interesse da indústria cultural em subsidiar produtos culturais que questionam a ideologia hegemônica, mas há uma série de imposições de como esses produtos podem ser veiculados, porque a motivação da indústria por trás desse espaço concedido é para controlar e dosar o que é criticado e como a crítica é veiculada


No grande mercado de ideologia encapsulada, a revolta também vende e tem seu lugar calculado dentro da produção do imperialismo cultural: um produto pode ser vendido como crítico à ideologia hegemônica e seguir com os mesmos modos de produção e comercialização cultural que seguem favorecendo a classe dominante.


Diante disso, então, a série assume um compromisso de extrema importância e que vem sendo silenciado por propaganda sionista, e de forma muito astuta denuncia o genocídio palestino, o que, honestamente, é a primeira vez que eu vejo em uma série dessa proporção. Isso não é diretamente mencionado, mas marca uma cena muito impactante, quando Saira – guitarrista e idealizadora da banda – é impedida de gritar a palavra WAR (guerra) dentro do estúdio. 


Deixo, então, minha recomendação dessa série que ainda não está disponível no Brasil, mas é possível encontrar para assistir em inglês. Denunciar as violências islamofóbicas é importante para quebrar com a imagem orientalista que permite um silêncio ensurdecedor sobre as políticas de eugenia praticadas por israel que vêm dizimando a população palestina e que são endossadas pelo dito ‘ocidente’ permitindo políticas anti-imigração que condenam o Oriente Médio na política internacional.


Minha opinião aqui é clara e objetiva: a libertação palestina é uma necessidade histórica para o avanço de todos os povos oprimidos do mundo. É um achado e tanto uma série que, com toda sua limitação enquanto produto cultural, pode trazer tantas críticas pertinentes.


Conta aqui se você já assistiu à série ou se tem outras recomendações que trazem esses questionamentos e vamos expandir nosso repertório crítico sobre o Oriente Médio.



Referências

BARBOSA, Francirosy Campos. Sem lenço, sem abaya, sem burquíni – a islamofobia francesa. Jornal da USP, 2023.

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Companhia das Letras, 1990.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


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2 comentários


Convidado:
26 de set.

Maravilindeeeeeeee💜

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Gaia Jutz
Gaia Jutz
26 de set.
Respondendo a

💜💜💜

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