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Nem tudo é sertão






O que seria um dos filmes mais importantes do ano de 2024 acabou por se tornar objeto de discussão. O Grande Sertão, de Guel Arraes, uma adaptação do romance de João Guimarães Rosa, que contou com uma campanha publicitária nos principais veículos de comunicação, não se converteu em um clássico instantâneo como O Auto da Compadecida, Caramuru e Lisbela e o Prisioneiro do mesmo diretor. Até agora, em termos de bilheteria, o filme não superou nem Os farofeiros 2 nem Nosso Lar 2, quando se fala em bilheteria do cinema nacional.


Entretanto, essas são preocupações de outra ordem. A questão principal é a transposição que o filme realiza das paisagens de Minas, Goiás e Bahia para uma paisagem distópica sudestina. Paisagens diferentes com a manutenção dos personagens, seus diálogos e ações. Nisso, o filme acerta. O que se tornaria um filme puramente de ação, mantém a poesia dos diálogos numa encenação teatral, tal como O Auto da Compadecida. Mas há alguns problemas nisso e discutiremos a seguir.


Ilustração de Poty Lazzarotto para o livro Sagarana
Ilustração de Poty Lazzarotto para o livro Sagarana

Em primeiro lugar, há de se estabelecer que a literatura e o cinema são artes particulares, com seus próprios mundos e lógicas internas. A ponte entre esses dois mundos pode se encontrar no roteiro. Em segundo lugar, o que há de comum em todas as manifestações artísticas é a relação entre forma e conteúdo, ou seja, a maneira como se conta uma história. Há livros e filmes que são bons por sua forma, assim como há outros que são bons por seu conteúdo.


Mas, grandes obras de arte são aquelas em que a forma serve ao conteúdo e vice-versa.

Nesse ponto reside a grandeza do romance de Guimarães Rosa: a forma poética é construída sobre as imagens do norte de Minas e das chapadas do Goiás. O que seria do livro sem as constelações Rabo-de-Tatu e Carreiro-de-São-Tiago? Sem os buritis, lágrima-de-moça e imburanas? Esse é o grande sertão. Tão poderoso que torna o pensamento mais forte. Onde se anda 60km sem ver gente, com seus vazios do tamanho do mundo. Davi Arrigucci Jr., em seu artigo O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa, atenta para o fato de que “a linguagem de pretensão cosmogônica só pode ser construída com os materiais dados de línguas ou falares existentes, de algum modo trabalhados no cadinho da experimentação, em soldas inusitadas, com fins precisos de construção de um determinado mundo ficcional e essa matriz é o centro-norte de Minas”.


Em relação ao conteúdo, a correspondência entre literatura e realidade também é válida. As ações de Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro e Hermógenes só são possíveis e verossímeis porque são personagens que surgem desse sertão, da relação desses personagens com o mundo evocado, de suas atitudes e colisões com a realidade, das relações humanas socialmente determinadas. Transpor a linguagem e as ações para uma paisagem urbana, distópica e superpopulosa é um mecanicismo do filme.


Isso se explica por uma tendência artística que ganha força no século XXI: na tentativa de se aproximar cada vez mais da realidade, levam-nos cada vez mais longe do presente por meio das distopias. Existem casos e casos em que grandes obras são produzidas, porém, em outros, só serve como um afastamento da realidade concreta do nosso tempo histórico.


Por outro lado, temos as demandas do mercado cinematográfico e do público, ambas produzidas e fabricadas historicamente. O filme competiu com a bilheteria dos novos Mad Max e Bad Boys. Caso Guel Arraes e Jorge Furtado optassem por uma adaptação mais próxima do romance, teríamos um filme que fugiria dessas demandas. Uma das máximas do romance (“o sertão é uma espera enorme”) é incompatível com esse desejo. Hoje, o espectador sente-se mais confortável com o formato das séries e minisséries (por que Scorsese não dividiu seu último filme em episódios?). Grande Sertão, uma coprodução da Globo Filmes, foi pensado assim: em pouco tempo teremos uma minissérie da Globoplay em oito episódios, com ação, armas e reviravoltas.


A transformação do cenário do sertão em favela, mediado pela violência, é uma demanda do mercado. Ora, quando se fala em sucesso de bilheteria nacional quem não pensa em Cidade de Deus ou Tropa de Elite? Até porque, a relação entre regional e nacional que há no romance de Guimarães Rosa pode ter sido ultrapassada por outra maneira de representar esse conteúdo. O espectador não se reconheceria na história por meio do sertão, mas por meio da violência urbana que faz a mediação entre regional e nacional, no processo de desenvolvimento histórico da modernização e urbanização do Brasil. Universalizar as experiências é uma forma de atingir cada vez mais pessoas. E mais pessoas podem se interessar pelo romance de João Guimarães Rosa e conhecer o mundo do sertão.


No livro, o sertão é do tamanho do mundo. Tudo é grande .Mas nem tudo é sertão

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2 comentários


Bianca Lais
Bianca Lais
06 de ago.

Acho interessante que uma obra tão clássica tenha sido reinterpretada para se adequar à uma realidade para as "massas" enquanto produções da TV insistem em manter estereótipos e caricaturas do sertanejo. Texto maravilhoso!

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Volnei Freitas
Volnei Freitas
26 de jul.

Guilherme, uma visão interessante e bastante plausível. Parabéns! Sua coluna detalha bem porque a própria sinopse foi um dos motivos pelo qual o filme "não me ganhou". Adorei assistir o Auto da Compadecida (para mim ainda a melhor comédia que assisti), Lisbela e o Prisioneiro, Tropa de Elite. Não assisti Cidade de Deus, nem sei se um dia o farei - nem todo o mercado reage ou cria expectativa sobre as mesmas demandas, ainda há espaços nichados. A questão é definir que público se quer mediante os objetivos almejados - Gregos e Troianos digladiaram-se até o fim.

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