top of page

Notas sobre o horror digital

Atualizado: 2 de jun.

Matheus Maciel é autor, historiador e professor. Atua como colunista de Terror e Fantasia na revista Especular











Quando falamos em terror como um gênero, é bastante natural pensar nos clássicos góticos, como os contos de Edgar A. Poe ou O castelo de Otranto, de Horace Walpole, talvez os que mergulham mais a fundo nas águas abissais pensem no horror cósmico de H.P. Lovecraft, e os aficionados por cinema estejam sempre prontos para falar sobre as diversas películas de slasher ou a obra sanguinolenta do Dario Argento (1940 - ). Eu me incluo, é claro. O que, porém, tem me intrigado ultimamente em termos de terror é como o medo foi, historicamente, assimilado pela digitalização da vida. 


Se na análise que fiz do filme Sinais (2002) anteriormente aqui na coluna, uma das questões que mais me chamaram a atenção foi como a informação era essencial para a construção do medo e da dúvida dos personagens do longa, uma inquietação me levou um passo além no que tange ao “terror da informação”. 


Essa inquietação se chama Kairo (ou Pulse, mas vamos chamar de Kairo mesmo), um longa-metragem japonês dirigido por Kiyoshi Kurosawa e lançado em 2001, apenas um ano antes de Sinais


O filme nos mostra a emergência de uma pandemia que se alastra por meio de aparelhos eletrônicos e da internet. O título, Kairo  significa, em japonês, “circuito”. Pudera, pois é por meio dos circuitos do cotidiano que o filme progride e o terror se desdobra. A pandemia, aliás, é um tanto não usual: é uma pandemia de fantasmas. Você quer ver um fantasma?, é o que um personagem recebe por intermédio de sua impressora enquanto tenta… Instalar a internet em seu computador. Admito que achei um tanto cômico na hora que vi, mesmo que a cena tenha um clima de tensão no talo. Acho que meu riso foi o resultado do choque cultural entre o comecinho dos anos 2000 e atualmente, onde a internet não é apenas um pilar da vida, - não só da vida digital - mas um imperativo quando se trata de vender um aparelho. 


Acho que até algumas geladeiras tem Wi-Fi. 


Mais no início do filme, uma personagem tem de ir buscar um disquete - eu dei um sorrisinho de novo aqui - na casa de um colega de trabalho, para continuar as atividades do dia na loja. Nessa parte, o filme nos apresenta como vai funcionar. A jovem, chamada Michi, chega na casa do amigo, Taguchi, e o vê bastante melancólico sentando e olhando para o nada. Depois de uma conversa incômoda, Taguchi sai andando devagar para o quarto. Michi o segue e se depara com visões sobrepostas e perturbadoras, mas entende que seu colega deu fim à própria vida com cabos do computador. O símbolo é claro e de arrepiar nessa cena.


No desenrolar da obra, podemos notar que o tom narrativo e da cinematografia casam em um matiz pálido, que casa sentimentos de melancolia, indiferença e total pessimismo por um futuro regrado pela vida digital. Vou deixar, ao fim da coluna, um vídeo do canal Quadro em branco que traz um texto completo e instigante sobre o tom de Kairo. O que se conectou a uma pessoa que assistiu o filme, pela primeira vez em 2024, foi a contemporaneidade do tema.


Não queria trazer aqui o jargão da “obra velha mas, atual”, que geralmente é acompanhado por uma discussão oca que joga com as coincidências e obviedades de trabalhos antigos que encontram algum reflexo na atualidade, entretanto, lá vai: o filme é sim bem atual. Atual não por temas que emergiram magicamente ao encontro do que acontece atualmente, mas porque o horror contido nele se expandiu com o contexto do dia em que o assiti. Não é só pelo espaço virtual que permite conexões entre pessoas, como e-mail, mas pelo boom das redes sociais que criou conexões, a um nível agressivo, entre pessoas que jamais sonhariam se conhecer e se comunicar de uma forma tão despojada e simples. Se os fantasmas do filme habitavam um espaço virtual, vazio e desolado a ponto de beirar o liminar em Kairo, imagine as possibilidades do que poderia acontecer no metaverso?


Esse tipo de “assombro digital” encontra uma ponte interessante quando pensamos no gênero cyberpunk. A vida, no conceito do cyberpunk, é coercitivamente conectada ao espaço digital, a ponto da própria realidade tornar-se banal. Ter uma ovelha robótica é legal. No livro Carbono Alterado, publicado em 2002 (olha as coincidências) e escrito por Richard K. Morgan, o personagem é dotado de um implante que o faz receber propagandas dentro da cabeça só pela proximidade da fonte emissora. Não estamos falando de anúncios de eternos 5 segundos no YouTube, mas um soco informacional diretamente no cérebro com um assunto que você talvez nem tolere. Isso para não dizer que o ambiente cyberpunk de Carbono Alterado seja empanturrado de abuso de drogas e pornografia. Como os fantasmas podem  competir com isso?


Talvez, assombrar disquetes e conexões primitivas de internet seja uma aceitação melancólica e talvez derradeira da própria vida. Em certa altura de Kairo, uma personagem diz que os fantasmas não querem matar, mas tornar seus alvos eternos, vivos para sempre em meio digital. 


Frente a um futuro assaltado pela violência em todas as frentes e alienação do próprio corpo e do ser, a epidemia de fantasmas possivelmente tenha sido apenas um primeiro soar de trombetas do que ainda vamos enfrentar. 


Você pode assistir o vídeo que citei no link a seguir: https://youtu.be/_2sn3c_x6ig?si=ht1tysRaPVh1OQbk

22 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page