top of page

O Brilho no Véu Quântico

Um conto de Gabriel Mello


Reprodução de imagem: 1930s 1940s Woman Scientist In Lab Coat Holding Up And Examining Beaker Of Liquid. Disponível em: https://pixels.com/featured/1930s-1940s-woman-scientist-in-lab-coat-vintage-images.html

I


Já estava tarde, eu sabia muito bem quando decidi deixar o laboratório, mas eu precisava descansar a minha mente, botar um ponto final naquela inquietação consumidora. Eu sequer imaginava que a história tomaria o rumo correto, ou que as minhas inquietações servir-me-iam como estopim para algo que revolucionaria a minha carreira.

Antes daquela noite, sequer imaginava que o nome Ana Silva entraria para os principais livros de história. Não pensava na glória das minhas descobertas enquanto passava sorrateiramente pela trilha que havíamos construído em meio à Floresta Amazônica. Meu uniforme fazia meu corpo suar – sentia um calor agoniante por debaixo daquele tecido pesado e metálico. Minha mão segurava com certa sacralidade a lanterna, e eu seguia mata à dentro, sentindo de forma palpável as batidas do meu coração.

Quando cheguei na parte mais fechada da mata, ouvi galhos quebrando e rugidos contidos. Sabia que minha presença não era bem-vinda, mas eu tentava alinhar minha vocação àqueles mistérios soterrados sob as folhas perenes. Apontei minha lanterna para mais fundo e de relance enxerguei aquele buraco da escavação. Passei, ao lado da minha equipe, semanas estudando aquela pequena região com destemor, apenas por uma instabilidade geográfica detectada pelas nossas sondas. Os esforços estavam nos direcionando cada vez mais para algo desconhecido, e as respostas pareciam nunca chegar.

Desci o barranco com cuidado, pisando delicadamente na plataforma que havíamos improvisado. Senti o metal tremer abaixo de mim, e com um clique na alavanca, aquela estrutura instável anunciou a descida, e automaticamente o fluxo da minha respiração se intensificou. O ranger metálico quebrava o silêncio e os avisos da floresta, anunciando estalos que, a certa distância, soariam completamente indecifráveis.

Quanto mais eu descia, menos eu sentia o calor que me perturbava, e mais escura a noite parecia ficar. Foi então que minhas mãos pararam de suar pelo calor e passaram a transpirar apenas pelo nervosismo. Vai ser rápido, eu tentava me confortar. Segurei a lanterna debaixo da minha axila, pressionando-a contra o meu corpo para que ela não cedesse, esforçando-me para pegar o meu pequeno caderno de anotação, preso na minha cintura.

Antes de começar a ler, olhei para o breu abaixo de mim. Nada apontava. Ainda devo estar muito longe do chão. Comecei a ler minhas anotações:



II


Terça-feira, 08 de abril de 2042

Relatório de pesquisa: anormalidades geográficas nos Vales (processos)


Hoje li um artigo sobre uma investigação quântica realizada no norte da Floresta Amazônica. Confesso que o experimento me pareceu bobo no primeiro instante, e eu muito menos entendi os incentivos acadêmicos. Porém, li algo que mudou minha visão sobre o meu trabalho. Posso estar enganada, mas acho que tracei uma linha entre as teses que li e aquilo que estou vivendo há semanas nesse trabalho dentro do Centro de Pesquisas Avançadas do Brasil (CPAB).

Alguns físicos teorizaram que partículas subatômicas, como os férmions de Majorana, poderiam desempenhar um comportamento anormal em diferentes pontos do Vale Amazônico, formando uma espécie de rede quântica que interligava diferentes pontos do Vale Quântico, como decidimos chamar essa região repleta de anomalias geográficas. Essa afirmação chamou minha atenção, pois correlacionava diretamente com os estranhos fenômenos que testemunhamos aqui.

Enquanto leio sobre suas teorias, flashes das nossas descobertas vêm à mente. As sinalizações que detectamos em nossos sensores realmente parecem seguir um padrão quântico. Elas aparecem em locais diversos em momentos diferentes, sem qualquer explicação lógica. Além disso, notamos que alguns eventos parecem estar entrelaçados, reagindo entre si mesmo a grandes distâncias.

Essa interconexão quântica, se existir como eles propõem, explicaria muito sobre o comportamento do Vale. Essa teia quântica poderia ser a razão pela qual as sinalizações aparecem e desaparecem, e até mesmo como algumas áreas do Vale parecem estar em estados simultâneos, como se coexistissem em diferentes possibilidades.

Se nossas suspeitas estiverem corretas, estaríamos testemunhando um fenômeno extraordinário. A Floresta Amazônica, esse ecossistema impressionante, poderia estar intrincadamente ligada à mecânica quântica em uma escala que ninguém jamais imaginou. Seria quase poético imaginar que a natureza segue leis que transcenderiam nossa compreensão clássica, como se a própria floresta estivesse emaranhada com o tecido do universo.



III


Escrevi aquelas alucinações teóricas uma hora antes de decidir de vez que deveria visitar o Buraco. A inquietação me movera mais do que tudo, porém, naquele estado em que eu estava, bastante perto do local mais baixo que poderia chegar, cogitava se deveria prosseguir com ideias tão prematuras.

Quando a plataforma cessou e eu avistei o chão logo abaixo daquela chapa metálica, sabia que não havia mais retorno. Coloquei um pé para fora, e depois o outro, pegando novamente a lanterna nas mãos assim que eu guardei o meu caderno. Segui adiante, apontando aquele rastro de luz para onde eu sabia que me guiaria até o final daquela cratera. O chão estava húmido e eu sentia a terra transformar-se em barro à medida que eu pisava. Meus passos ficavam marcados, mas eu não voltava meu rosto para trás.

Quando me dei conta, já estava com as mãos encostadas no barranco, surpreendentemente húmido.

“Está tão quente...”, sussurrei em descrença. Sentia minha mão aquecer-se enquanto minha pele parecia absorver um fluxo inestimável de humidade. Fiquei confusa, e meu cérebro parecia não saber qual sentimento deveria processar. Afastei a mão, mas logo me vi tentada a encostar mais uma vez, e assim eu fiz. Segurei a lanterna com a boca para que tivesse a sensação completa. Afastei minhas mãos na distância máxima que meus braços permitiam.

Arrepiei com o acentuamento do conflito sensorial. Era completamente estranho: minha mão direita praticamente congelando de frio, enquanto a esquerda mal conseguia encostar naquela argila quente. Afastei as mãos e dei três passos para trás. Um. Dois. Três.

Procurei por uma visão mais ampla, buscando qualquer anormalidade, mas nada parecia fora do comum. Minha tentação, então, passou a me colocar numa atividade sensorial prática. Deslizei minha mão direita por diferentes partes daquele barranco, sentindo a argila penetrar meus poros enquanto a pele transitava do frio e húmido ao quente e seco. Era uma complexidade inenarrável.

Não sei qual foi o lampejo idealizado que tive, mas me vi penetrando a mão por entre aquelas camadas espessas de barro. Numa parte mais superficial, o calor acolheu-me. Fui mais fundo e cessei quando percebi que, à altura da ponta do meu indicador, comecei a sentir o frio. O restante da mão, porém, trabalhava com o calor. Tirei minha mão, mas apenas para erguer a manga da minha blusa até os meus ombros. Então, num movimento forte e preciso, enfiei todo o meu braço naquele acúmulo de terra.

Senti meu braço ser envolvido pela lama, esta se acentuando ao meu corpo. Esperei sentir uma mistura confusa de sensações, porém, não senti nada. Mais do que nada, eu senti um completo vazio, como se, de repente, eu tivesse tirado meu braço e o colocado em contato com nada mais do que ar. Pasmei de surpresa, e meu impulso foi tirar o braço. Será que o barranco é oco?

Porém, ele não era. Eu consegui ver, com a ajuda da lanterna, o caminho exato que meu braço criou. Apontei a luz para dentro e vi que havia muito mais lama para ser perfurada. No entanto, apenas por um movimento desajeitado que dei com a lanterna, percebi pequenos pontos verdes cintilantes em meio à argila. Franzi meu rosto e semicerrei os olhos, forçando-me a chegar o mais perto possível.

Brinquei com a luz da lanterna até que eu estivesse certa do caminho que teria de fazer para fisgar um daqueles pontos verdes. E assim o fiz. Senti na minha mão algo que parecia uma pedra minúscula, quase imperceptível. Com cuidado, fechei meus dedos numa pinça e peguei aquela pedra até que ela estivesse perto de mim. Tirei a minha mão e olhei para onde eu sentia que a pedra estava. Porém, com a luz da lanterna sendo dissipada para baixo, eu não vi nada, mesmo que eu enxergasse a minha mão nitidamente na penumbra.

Quando apontei a luz direta, enxerguei o brilho verde novamente. A luz pareceu agredir meus olhos e, mais do que isso, senti aquela mesma sensação conflitante de calor e frio, porém sendo direcionada apenas às pontas do meu dedo. Então é isso. Essa pedra que estava fazendo aquele jogo comigo, pensei, feliz por finalmente entender.

No impulso da empolgação, acabei pressionando mais forte do que deveria aquela pedra pinçada com os meus dedos. O resultado foi uma explosão silenciosa: a pedra se estilhaçou numa nuvem inicialmente brilhante, mas que logo apenas tornou-se opaca e condensou ao chão. Pasmei com o que vi, e com a imagem que se formou abaixo de mim: a terra contaminada com minúsculas partículas verde florescente assim que joguei a luz da lanterna para baixo.

“Isso é... éter”, falei de surpresa.



IV


Voltei apressadamente para o laboratório, com a lentidão da plataforma me agoniando profundamente. Éter, será mesmo possível? Não tenho dúvidas de que seja, mas ainda assim, como um conceito tão defasado simplesmente surgiria tão de repente? Eu lutava durante todo aquele tempo de espera para fechar da forma mais coesa as minhas próprias ideias. Sabia que a atribuição daquele fenômeno ao Éter seria problemática, porém capaz de solucionar todas as nossas perguntas. Tem de ser, eu tentava me reafirmar ao máximo.

Voltei para o laboratório com uma velocidade surpreendente, meus pés correndo como nunca enquanto eu passava pelas encruzilhadas daquela floresta fechada. A lanterna seguia o fluxo da minha mão, e com isso a luz criava um rastro desigual à medida que eu corria. Tampouco reparei no trajeto que tomava, tendo meus pensamentos limitados àquilo que seguia na minha mente. Enquanto corria, muitas vezes cedia aos meus impulsos curiosos e olhava para a minha mão esquerda, fechada com uma sacralidade ao proteger três pedras que eu havia coletado. Sabia que não poderia chegar no laboratório sem nenhuma materialização das minhas realizações.

Encontrei o Centro de Pesquisas Avançadas do Brasil absurdamente silencioso quando cheguei. Devem estar dormindo, pensei enquanto olhava para o relógio preso na parede da sala principal. Não, ainda não está tão tarde. Talvez alguém esteja acordado. E mais uma vez minhas percepções foram concretizadas naquela noite. No caminho da sala principal até o laboratório da área externa, encontrei o Dr. Daniel, um dos pesquisadores mais dispostos com quem tive a oportunidade de trabalhar.

O meu rosto deveria denunciar minha ansiedade porque logo quando ele me viu, assim que nos esbarramos, ele perguntou:

“Doutora, está tudo bem?”

“Éter...”, falei sem fôlego.

“Perdão?”, ele franziu a testa, incerto do que eu falava.

“Éter, é isso o que causou as anormalidades nos nossos sensores”, respirei fundo, peguei ar por alguns segundos e prossegui. “O Vale está numa área de instabilidade quântica, algumas pesquisas estavam sendo feitas há semanas, Doutor. Estava atenta a isto, claro, mas somente nesta noite tive a percepção de que nosso caso poderia se relacionar com as variações quânticas. Fui até o Buraco e encontrei isso.”

Abri minha mão pela primeira vez, mostrando as pedras que brilhavam num verde vivo graças à boa iluminação do CPAB. As pupilas de Daniel dilataram e todas as palavras lhe fugiram de surpresa.

O seguir da noite foi conturbado, mas bastante produtivo. Aquilo, óbvio, era motivo suficiente para que todo o time presente no laboratório fosse mobilizado, e por aproximadamente quatro horas realizamos testes, dos mais básicos aos mais complexos, com aqueles pequenos cristais. No final, não havia dúvida: estávamos diante de Éter, um elemento que jamais imaginaríamos existir propriamente, mas que mostrou o seu brilho através daquele véu quântico.

Se a noite da descoberta fora conturbada, as próximas semanas se expandiram para níveis ainda mais complexos. Em questão de dias, os holofotes todos haviam sido direcionados ao CPAB, e a Floresta Amazônica entrara em grandes pautas. Grandes quantidades de argila foram coletadas para análise, mas sempre com um cuidado necessário para não acabar com aquilo que pouco conhecíamos. A certeza derradeira, porém, viera apenas com a interferência indígena. Líderes da etnia Ashaninka manifestaram-se em meio às descobertas, atribuindo o conhecimento prévio daquelas pedras de Éter Quântico, principalmente nos barrancos à margem do Rio Amônia. A interferência não só nos trouxe cuidado, mas serviu como avanço inestimável às pesquisas.

Assim que conseguimos articular nossa visita a um nampitsi, território político Ashaninka, demos mais um passo na compreensão do uso ancestral do Éter Quântico. Fique totalmente fascinada com o que vimos, com a noção de que os Ashaninka por um todo, mesmo com a sua vastidão cultural, passaram a utilizar o Éter Quântico em múltiplas esferas da sua vida: como pigmento, nutriente para plantio, mas principalmente como forma de iluminação e combustão. Aquela, claro, fora a noção decisiva para submetermos o Éter Quântico a uma análise mais específica: a sua utilização prática.

Leonardo Piyãko, um potente pesquisador, passou a tomar a frente da pesquisa ao meu lado, e a conclusão fora uma máquina que extrairia da forma menos danosa possível o Éter Quântico.

Na concretização daquela máquina, as noções já estavam cruzadas e o veredito tomado: o Éter Quântico se mostrara como uma nova forma de gerar energia, porém totalmente natural e renovável. Curioso como ainda encontro-me pasma com a percepção de que a natureza presenteou-nos com algo tão otimista, uma oportunidade de seguir com os avanços tecnológicos sem estarmos alheios ao meio ambiente. O processo no atual ponto levou não só a mim e a muitos pesquisadores Ashaninka ao triunfo e reconhecimento profissional, mas apontou uma nova perspectiva para a América Latina como um todo. Enquanto escrevo, acompanho o surgimento de uma nova ordem mundial: um deslumbre para Abya Yala, nossa América Latina. Mais ainda, olho para um anel gentil que carrego no meu dedo, banhado em prata, segurando com gentileza aquele brilho esverdeado que me trazia tanto orgulho. Éter Quântico. Que dádiva.

50 visualizações1 comentário

1 Comment


Gabriel Mello
Gabriel Mello
Aug 05, 2023

"O Brilho no Véu Quântico" surgiu como necessidade para construir meu universo especulativo. Tão de repente, me peguei construindo uma linha do tempo complexa sobre o futuro, do mais próximo ao mais distante, imaginando acontecimentos que nos levariam àquela que, para mim, é a realidade sonhada. Cheguei à história de Ana Silva depois de escrever um capítulo do meu livro sobre o papel de uma nova forma de energia, limpa e renovável, nos avanços tecnológicos. Vi o conceito como oportunidade de colocar a América Latina no centro da nova ordem mundial, e a partir disso expandi a história de Ana Silva e do Éter Quântico. A participação indígena é inegociável dentro das minhas especulações: antes que pudesse me colocar em…

Like
bottom of page