top of page

O Dia dos Mil Sóis

Um conto por J. Felippo Gomes



Ainda me lembro de como Brazilav foi mudando com o passar dos anos. Quando Olavo Poliak começou a ser notado pelos políticos e os ricos, várias coisas mudaram. Muitos dos seguidores dos Cinco Primordiais deixaram de frequentar os templos. A parcela da população que tinha uma fé questionável decidiu largar de vez e, ainda por cima, os casos de poluição aumentaram ainda mais por causa daquele cientista panaca. Mas, bem, isso já vinha acontecendo há uns trinta anos, quando eu ainda tinha quinze. Ainda assim, quando penso naqueles tempos, tudo parecia melhor...

A cidade grande perto do meu município era tão bela, com os templos sempre limpos e brilhantes, cada um diferente a seu modo, mas sempre com a beleza de seu respectivo Deus. A harmonia das cidades com a natureza, árvores e flores exalando aromas deliciosos e um ar tão puro. Porém, com a Primeira Revolução Tecnológica, tudo isso incrivelmente foi morrendo aos poucos. Claro que a revolução teve seu lado bom, principalmente com a melhora dos automóveis e do surgimento da energia limpa; só que ainda assim, era estranho ver tanta tecnologia, que parecia ter vindo de outro mundo.

Ah, sim. A Primeira Revolução também trouxe elas, as Tochas de Héstia. Aquelas torres foram projetadas com o intuito de proteger o país de qualquer possível guerra, e o cientista que as criou escolheu esse nome para que relembrássemos o símbolo da antiga Deusa da mitologia grega. Lembro que poucos criticaram as torres, mas o seu nome, chamando o cientista de idólatra por ter escolhido o nome de uma Deusa como batismo às torres. Foi estranho ter visto como ela foi construída sabendo que naquele tempo minha casa ficava na última rua da cidade, e as torres ficaram a uns três quilômetros do município. Tudo isso sem contar a Lareira, uma torre enorme no meio de Brazilav que se interligava com as tochas, criando uma redoma ao redor do país inteiro.

Foi, inclusive, com a pesquisa do Olavo que conseguiram mudar até os carros! Com a Segunda Revolução Tecnológica, muitos automóveis passaram a ser capazes de voar, no início a uma altura pequena, mas, a partir disso, a capacidade foi aumentando. Desta forma, construir edifícios era muito mais eficiente. E assim se foi, durante um mês inteiro, várias máquinas de construção voadoras passando para lá e pra cá. Quando acabou aquela zoeira, no fim só restou aquela coisa assustadora de 300 metros de altura. Ainda me assusto com a velocidade que eles construíram tudo aquilo, mesmo sabendo que com aquela tecnologia realmente fazia sentido terem construído tudo tão rápido.

Mesmo com todas essas mudanças, continuei amando minha cidadezinha, se eu não me engano tinha pouco mais de 20 mil habitantes. Os templos lá não eram grandes coisas, mas eram o suficiente para poderem exercer a sua fé. E assim os dias foram passando, tranquilos e serenos. Recordo-me de minha mãe angustiada, falando que “essa calmaria tá estranha, como a calmaria antes da tempestade”. Assim como toda mãe, ela estava certa, porque nem a gente e nem o mundo estaria prontos para o que aconteceria no outro dia. A data em que a maior parte do mundo deixaria de existir e ele nunca mais seria o mesmo: o Dia dos Mil Sóis.

Do amanhecer, até ao entardecer, quando tudo aconteceu, um silêncio percorria a natureza. As pessoas, obviamente, continuaram com as suas vidas normalmente; era um dia como qualquer outro. Entretanto, era como se a natureza soubesse de alguma coisa, e estava se preparando. Os ventos estavam calmos e serenos, apenas brisas leves passando; o piar dos pássaros tinha sumido, e até o riacho que tinha ali perto parecia mais silencioso.

Bem quando o sol já havia sumido do horizonte, a primeira coisa que eu vi foi uma luz extremamente forte, bem longe, como se os raios de luz estivessem voltando. E assim, mais e mais pontos de luz foram aparecendo, enquanto a noite foi virando apenas um clarão branco. Tudo isso nos primeiros segundos. Depois veio o som de explosão, junto com a explosão em si, mas, graças às barreiras, ela foi totalmente absorvida. Quando todo o clarão foi sumindo, aquele cenário diante de mim parecia aterrorizante, com tudo do lado de fora em chamas.

Mesmo que eu já estivesse nos meus 45 anos de idade, minha curiosidade ainda persistia. Peguei a lambreta que eu usava para me locomover e dirigi não mais que um quilômetro e meio, o suficiente para ver o próprio inferno na Terra. Tudo além da barreira estava pegando fogo, bem como as imensas nuvens com formato de cogumelo no cenário. Estava tudo destruído e em chamas, boa parte da vegetação queimando diante dos meus olhos. Apenas o que eu via era fumaça, fogo e destruição. Sendo devota de Makéma, a Deusa da natureza, pude sentir sua dor por cada planta e animal mortos nas explosões, como se eu tivesse perdido meus filhos. Porém, consegui sentir também as dores de Sonden, Seliat e Tichy. O mundo inteiro estava em agonia junto com os Deuses.

No dia seguinte, o governo disse o que havia acontecido. Aparentemente, e há um bom tempo, vários países vinham entrado em conflitos, mas separados em dois grupos baseados em interesses e alianças. Nada, porém, era oficial. O cenário fazia a ameaça de uma terceira Guerra Mundial ser crescente, mas tudo explodiu quando ocorreram pequenos ataques a diferentes países, sendo o estopim para aqueles que possuíam armamento suficiente para atacar seus inimigos. Várias ogivas nucleares foram lançadas simultaneamente, destruindo continentes e tudo o que havia neles. O resultado? A quase extinção da raça humana. Esse teria sido o fim se não fossem pelas Tochas de Héstia; graças a elas estou aqui contando esta história.

Mesmo com a barreira protegendo a maior parte do dano, ainda havia o risco de uma parte da fumaça se alastrar por todo Brazilav. Desta forma, o governo resolveu mandar algumas máquinas voadoras para apagar a maior parte dos focos de incêndio. Durante uma semana inteira, mesmo com as máquinas apagando as chamas, o país se encontrou sem nenhuma luz solar. Era como se vivêssemos uma noite eterna, e demorou pouco mais de um mês para apagarem os incêndios considerados mais perigosos.

Se a situação no Brazilav já se encontrava preocupante, ela ficou ainda pior no futuro. As pessoas foram, em questão de meses, deixando de acreditar nos Deuses e passaram a confiar somente na ciência. Era óbvio: viram como ela poderia ser de grande utilidade, os protegendo muito melhor do que os Cinco Primordiais. E, aos poucos, os Deuses foram deixando de se comunicar com os seus seguidores, até que em um certo momento um fiel de Rováhu, o antigo Deus da criação e destruição, o único que ainda se comunicava, disse que eles entraram num estado de inanição. Por quê? Bom, os domínios dos Deuses foram quase todos destruídos... não me surpreenderia se eles tivessem deixado de existir.

Quando toda a poeira baixou, e todos já estavam mais calmos, a Terceira Revolução Tecnológica mudou a situação de vez. Com o aprimoramento dos robôs com inteligência artificial avançada, eles começaram a trabalhar ajudando os humanos com coisas simples. Mas a coisa foi escalonando, ao ponto das pessoas colocarem aqueles pedaços de metal para realizar as tarefas que lhe diziam respeito. Além disso, a realidade virtual também não ajudou em nada e a população foi ficando sedentária ao ponto de alguns nem saírem de casa.

Contudo, nessa Terceira Era, o que mais deixou as pessoas encucadas foram os boatos da Mestos Krídlami, a cidade com asas. Os boatos diziam que os ricos tinham se juntado para deixar Brazilav antes de tudo ruir de vez. Algumas testemunhas falaram que durante a noite viram algo no céu com o tamanho de uma cidade pequena, e o mais assustador era que ela não fazia nenhum som. E tão rápido quanto apareceu, ela sumiu no ar, como se nunca estivesse ali. Enfim, o resto você já sabe, não é? Mesmo que estejamos no fim da Terceira Era, você já sabe muita coisa.

Não entendo por que você quer tanto ouvir a história dessa senhora de 95 anos, mas tive o maior prazer em contar. Deixa eu ir, ainda tenho que cozinhar aqueles bolinhos de chuva antes que sua mãe chegue. Você sabe bem como ela fica quando está com fome... quando quiser ouvir de novo, só vir aqui, está bem? Eu amo as visitas do meu neto favorito, mas não fala isso para ninguém. É o nosso segredinho.

11 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page