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“O Farol”, casos de vó e o horror cósmico por meio das imagens

Cleiton Lopes











Minha avó sempre contava casos de assombração e mistério em que forças sobrenaturais perseguiam pessoas por seus atos. Um clássico era o da mulher que frequentava regularmente a igreja, mas era fofoqueira e não seguia os princípios católicos. Depois de morrer, ela apareceu na igreja em que frequentava e vomitou todas as hóstias que já tinha tomado lá. Bom, quanto a veracidade dos fatos, nunca saberei dizer. O que importa é que o sobrenatural, o místico, surgem nas histórias da humanidade desde o início dos tempos nas suas mais diferentes formas para trazer alguma lição sobre o mundo terreno e as atitudes humanas.


Tendo como principal expoente o escritor norte-americano H.P. Lovecraft (1890 - 1937), o horror cósmico tem algo parecido. A ideia do subgênero é falar sobre a insignificância do ser humano, que existem coisas maiores no universo do que nossa existência é capaz de compreender. Ao se dizer “cósmico”, pensamos em cenários intergalácticos, naves espaciais e coisas do tipo, porém, os melhores exemplos se passam no cenário terreno. 

Um deles é o terror O Farol (2019), de Robert Eggers.



No longa, dois homens trabalham cuidando e dando manutenção em um farol em uma pequena ilha. Enquanto Thomas Wake (Willem Dafoe) é o experiente marinheiro, responsável por supervisionar as atividades, Thomas Howard (Robert Pattinson) é um novato que tem de seguir as ordens de Howard. O chefe se mostra um personagem difícil de conviver, sem muita polidez social, sendo desagradável e soltando gases sem nenhum pudor. Progressivamente, enquanto a relação dos dois é construída, vamos conhecendo mistérios que assombram o lugar.


 Ou será somente a mente do jovem Howard?


O personagem de Dafoe, além de mais velho, ainda tem experiências na vida marinha e conhecimento sobre o místico. Em suas falas e brindes estão cheios de figuras místicas e religiosas como Netuno, Jesus, Maria e José. O personagem de Pattinson, por outro lado, não conhece e nem parece acreditar nas “histórias de pescador” que seu chefe conta. Teremos, a partir disso, uma construção progressiva através das imagens, materializando que é invocado pelo marinheiro. Se nos casos da minha avó, ela tinha que contar através de palavras, o diretor Robert Eggers recorre às imagens. Ele trabalha todo o misticismo encarnado nas figuras marinhas, que estão presentes nas histórias de horror cósmico, compondo planos quase como se fossem pinturas, tendo como estética o primeiro cinema. Aí que está o grande destaque de O Farol, afinal, cinema é (ou deveria ser) imagem e não palavras.


Começamos pequeno, literalmente, com Howard encontrando uma pequena figura de sereia dentro do colchão de sua cama. Pouco tempo depois, enquanto caminha a noite, o personagem é assombrado pela imagem de um corpo à deriva no mar. Ao tentar alcançá-lo, Howard acaba afundando e vemos uma sereia indo em sua direção. No instante seguinte, ele acorda em sua cama com uma goteira em seu rosto. A sereia irá aparecer em outros momentos do filme evocando uma certa sexualidade, servindo inclusive de inspiração para a masturbação do personagem.


Ao mostrar em último plano de Howard acordando, é possível pressupor que as imagens vistas são parte do sonho do personagem. Mas quem seria a pessoa morta, que parece ser um homem? Seria alguém que ele matou ou algum familiar assassinado? E aquela sereia? De onde surgiu? O ponto importante a se destacar aqui, que é caro ao cinema, é a construção de possibilidades através de somente o uso da imagem, conforme dito anteriormente. Sem o uso da palavra, de diálogos que possam dar exatidão do que vemos, são criadas diversas interpretações possíveis. Isso já é o suficiente para despertar nossa curiosidade para acompanhar a história dos dois. A partir desse princípio, O Farol vai trabalhar o que já foi dito anteriormente, a ideia do horror cósmico, de que existem coisas e mistérios muito maiores do que a existência humana.


Um outro exemplo, um dos grandes conflitos da relação entre os dois personagens, é o desejo de Howard de chegar até a luz do farol que Wake guarda. Um dos mistérios do filme é entender o que de fato ocorre na luz e que Wake parece ficar em até uma espécie de transe ao encontrar com ela. Temos um vislumbre de algo sobrenatural ao vermos tentáculos que lembram o de um polvo, circulando Wake na luz do farol ou o próprio se tornando um ser místico. Não fica muito claro. Os mesmos tentáculos irão surgir mais à frente quando Howard perde o controle e bate violentamente em Wake.


O Farol consegue, através do uso de imagens e da tradição popular do universo marítimo, construir tensão, medo, suspense e demais sentimentos semelhantes. Ficamos o tempo todo em busca de respostas concretas, mas elas não vêm e nas vezes que surge alguma possível, ela entra em conflito com outra fala do personagem dita anteriormente. Sendo assim, o filme consegue ser um dos grandes exemplos de horror cósmico recente em passar o sentimento de que existem mistérios muito maiores no mundo do que nossa mente é capaz de compreender.

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2 Comments


Meu filme favorito! Ótima review, Cleiton!

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Li a respeito do filme, mas acabei não assistindo - até agora! Fiquei curioso para ver a evolução do personagem e da trama sobrenatural: antevejo que o terror não é totalmente apresentado; no desconhecido reside nossos medos. Parabéns, Cleiton, texto instigante!

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