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"O feiticeiro de Terramar" e sua jornada introspectiva

Matheus Maciel, colunista











Existem obras literárias que são quase imperativas quando se toca no assunto do gênero. A série Harry Potter e A Crônica do Matador do Rei, certo? Já se tornaram presença constante em toda livraria, pelo menos aqui no Brasil. Tarefa muito difícil é entrar em algum lugar que venda livros e não esbarrar em um volume do bruxo adolescente. Já falamos um pouco sobre ele aqui na coluna, mas creio ser interessante usar este espaço para desmanchar a obra e analisar cada um dos fios que a compõem. Talvez com um pouco de paciência, fio a fio.


Proponho que comecemos pelas bases. Se trouxe à tona ambas as sagas literárias ali em cima foi por uma boa razão, pois elas compartilham algo em comum.


Uma das cenas possivelmente mais marcantes em O Nome do Vento, primeiro livro de A Crônica do Matador do Rei, é quando o espalhafatoso professor Elodin impressiona Kvothe ao chamar pelo nome da pedra, fazendo-a obedecer à sua vontade. Em Harry Potter, duvido muito que Expecto Patronum não fique ecoando na sua cabeça depois do quinto livro (ainda mais com a vocalização potente do dublador Caio César aqui no Brasil). Nomes. Magia falada. Linguagem.


A ideia de um sistema de magia na literatura que adota a relação nomes-feitiços vai ainda além dessas duas obras. No Ciclo da Herança - famoso pelo primeiro livro, Eragon - a magia, conhecida como gramarye, teve sua performance conectada a uma língua antiga e abandonada, em um tropo clássico que remete ao latim e sua sabedoria pelos escritos romanos, descoberta por eruditos medievais.


Os nomes e a magia, portanto, estão conectados por um tropo bastante sólido, pelo visto. É bastante razoável, se voltarmos no tempo, o estabelecimento de uma conexão entre o surgimento desse tropo e o livro O feiticeiro de Terramar, publicado em 1968 e redigido pela escritora norte-americana Ursula K. Le Guin, inicialmente publicado no Brasil pela editora Arqueiro e atualmente sendo publicado pela editora Morro Branco.


Na obra, acompanhamos os primeiros momentos da vida do feiticeiro Ged, posteriormente chamado de Gavião, mas que recebeu Duny como seu primeiro nome, o nome de batismo. A ideia dos nomes aparece já nessa dicotomia entre os nomes do protagonista: seu nome de verdade dá acesso, para outros magos, a um poder sobre ele. Portanto, é indispensável que os feiticeiros escondam seus nomes reais.


Terramar, o “continente” onde se passa a história, é um amálgama de arquipélagos que, mesmo não compartilhando precisamente as mesmas culturas e história, se conectam pela proximidade, relações econômicas e um presente espírito antropológico que oferece certa conexão entre povos tão diferentes. Seja pela ajuda mútua, seja pela guerra. Se vale aqui uma curiosidade, é que a autora é filha do antropólogo Alfred Kroeber. A influência do conhecimento e trabalho do pai podem ter sido cruciais para que Ursula lançasse mão de um mundo de fantasia regido por sutilezas. Se é comum, hoje em dia, que mundos de fantasia tenham povos que compartilhem geografias mirabolantes - o que não é nenhum problema - e culturas muito diferentes coexistam como pessoas que sentam lado a lado em um café, em O feiticeiro de Terramar, o mesmo fenômeno antropológico ocorre, porém com uma sutileza que respeita uma geografia insular com precisão, e une os povos e culturas sob sensíveis linhas e narrativas que tanto aproximam quanto afastam.


A história central do livro - um recorte elegante que faz o personagem principal ser interessante e ao mesmo tempo, por se afastar do monomito, torna o mundo um lugar vasto e desejoso de ser descoberto por quem lê - é focada nas descobertas de Ged sobre a magia e seus usos e consequências. Iniciado na experiência arcana por sua tia ainda bem jovem, decide procurar o mago de sua ilha para obter mais conhecimento e orientação. Cada ilha de Terramar, inclusive, pode ter ou não a presença de um arcanista que funcione como uma figura pública que participa tanto da vida cotidiana quanto de assuntos de guerra ou até a economia local. Um contraste e tanto é oferecido aqui em relação aos tropos e estruturas narrativas típicas de feiticeiros, principalmente ao que concerne ao subgênero “espada e feitiçaria”, onde magos são retratados quase como criaturas monstruosas e violentas, que montam e desmontam seres e a própria natureza em seus laboratórios profanos. Em Terramar, você vai ver feiticeiros que conjuram tempestades magnânimas e outros que simplesmente ajudam uma hortinha a crescer saudável.


Para melhor desenvolver-se como mago, Ged vai à escola de magos da ilha de Roke. Lá, experimenta a vida em sua maior variedade: conhece boas pessoas, pessoas desagradáveis, professores muito sábios e até faz amizade com uma criaturinha de motivos feéricos conhecida como otak. A jornada de Ged, então Gavião, torna-se marcada pelo surgimento da “sombra”, que em sua acepção mais junguiana possível, persegue Ged por Terramar da forma mais aterrorizante possível.


O feiticeiro de Terramar é, portanto, uma obra pioneira sobre alguns conceitos hoje tidos como clássicos no gênero da ficção fantástica, como a magia por nomeação e uma abordagem narrativa que se afasta do protagonista enquanto herói. A obra de Ursula Le Guin, em geral, é permeada de narrativas sensíveis e profundas, não sendo diferente no Ciclo Terramar como um todo. Em breve, gostaria de trazer as demais obras do Ciclo. Por enquanto, apreciemos o delicado equilíbrio entre terra e mar que o imenso arquipélago nos proporciona.

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