
Já sentiu, alguma vez, aquele frio na espinha ao assistir ou ler uma obra de terror que tem como tema ou cenário principal a Igreja e afins? Talvez seja algo pessoal, já que, desde pequena, sempre achei de tom sinistro e intimidador ver aquele cara pendurado em uma cruz, com sangue saindo de suas mãos e pés e uma coroa de espinhos sob sua cabeça acima de um altar, enquanto pessoas entoam cânticos em uníssono, e se preparam para ingerir o corpo e o sangue de um deus imaculado.
Talvez, essa sensação seja algo que atinja pessoas ao redor do mundo, uma vez que filmes como O Exorcista (1973) e A Bruxa (2015), ou a série Missa da Meia-Noite (2021) retratam temas religiosos cristãos e como há nuances bizarras dentro de seus ritos, crenças dos fiéis e conduta de alguns de seus líderes.
Entretanto, fui pega de surpresa, recentemente, ao ver um filme cuja discussão principal é centrada na religião budista. Marcas da Maldição ou Zhòu (咒), em seu idioma original, é um filme taiwanês lançado em 2022 que conta a história de Li Ronan, uma mãe que, seis anos antes do início do filme, quebrou um tabu religioso e foi amaldiçoada. Por consequência, ela precisa proteger a filha das consequências de seus atos.

O que acontece é que Li fazia parte de um grupo de investigação paranormal no estilo “caça-fantasmas”. Ela, seu namorado Dom e o primo dele, Yuan, exploram lugares com supostas presenças sobrenaturais, gravam e postam seus passeios e experiências na internet. Sendo assim, vale lembrar que o filme é filmado no estilo found footage, no qual a visão que temos dos acontecimentos é a visão gravada através das câmeras dos próprios personagens, como ocorre nos filmes Bruxa de Blair (1999) e Atividade Paranormal (2007). Somente com essa informação já dá para imaginar que a experiência por si só possui uma tensão extra pelo fato de o espectador ser colocado dentro da história, uma vez que assistimos tudo em primeira pessoa e a protagonista conversa diretamente conosco em diversos momentos do filme.
Certo dia, um aviso urgente chegou da casa de Dom, que vem de uma família muito tradicional, fechada e religiosa, chamando-o para voltar para a realização de uma celebração que ocorre uma vez a cada duas décadas em sua família. Pensando, então, que a viagem seria uma ótima fonte de material para o blog, ele leva a namorada e o primo para viajarem com ele. Infelizmente, ao chegarem lá, a experiência é muito mais traumática do que se pode imaginar.
Sem spoilers sobre como a trama se desenrola, beleza?
O que mais me chamou atenção, e que, provavelmente, foi a maior culpada em relação à minha noite não dormida depois de assistir Marcas da Maldição, é a iconografia religiosa do filme. Mais do que os sustos eventuais que levamos em algumas cenas de tensão, dos vultos que percebemos atrás de alguém ou no teto da casa de Li, há um trabalho representativo que realmente pegou no âmago do meu ser: todas as vezes em que aparecia a estátua da entidade causadora da maldição eu me apertava um pouco mais contra o sofá; toda vez que aparecia o sigilo religioso referente ao culto, eu sentia um frio na minha espinha e; toda vez que Li entoava a reza que, em teoria, nos mantém protegidos da maldição, eu me sentia amaldiçoada.

Kevin Ko, o diretor do filme deu uma entrevista em 2021 à Netflix, distribuidora do filme aqui no Brasil, sobre como o religioso afeta o imaginário das pessoas no sentido causador de medo e como isso se incorpora em filmes de terror, especificamente no seu filme:
“Eu sei como assustar o público com uma sequência de terror eficaz. Mas um bom filme de terror não é apenas sobre esses truques. O núcleo tem que ser sobre a natureza humana. Em última análise, o público tem que se preocupar com os personagens. O respeito pela religião, especialmente os tabus religiosos e as religiões que são muito obscuras, tem algum grau de medo. Adoro histórias de terror e, mesmo assim, não me atrevi a tocar nesse assunto. Eu queria ampliar esse sentimento em Marcas da Maldição.” - Kevin Ko, em entrevista à Netflix.
O divino, que na maior parte das vezes é retratado como o salvador dos nossos medos e angústias, também pode ser o causador. Assistir Marcas da Maldição é uma experiência que explora justamente o medo e desespero quando parece que nada, muito menos “Deus”, pode te salvar, ou o pior: é dele de quem você precisa se proteger.
Comments