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O mito, o místico e o ficcional: a transmutação da lenda do lobisomem na mitologia e ficção

As experiências pessoais e as referências culturais são dois grandes aliados da literatura ficcional. Clássicos da ficção científica, inclusive na literatura de horror, são inspirados em mitos, contos e vivências que se baseiam principalmente em medos.

Quando o medo inspira e os mitos alcançam as mentes especulativas — essas que se dispõem a transformar as lendas em ficção —, nasce um questionamento: o que é aceito e o que não é ao explorar a ficção através da mitologia?

No artigo a seguir, iremos explorar a transmutação do lobisomem nos campos da mitologia e da ficção; e como se construíram as narrativas ficcionais de uma das lendas mais populares da história.



Em noite de lua cheia…

O lobisomem surge na Grécia Antiga para demonstrar a ira de Zeus. De acordo com a lenda, o deus Licaon foi amaldiçoado por sua crueldade e frieza pelo mestre do Olimpo. Seu castigo? Se transformar em uma figura análoga lobo para disseminar ainda mais frieza e ainda mais crueldade, porém agora, com uma natureza condizente aos seus atos.


Zeus transformando Licáon em lobo, por Hendrik Goltzius

A lenda do lobisomem, ou licantropo, eventualmente se expande até Roma e consequentemente alcança toda a Europa. Nesse contexto, a lenda ganha uma nova versão com base no cristianismo onde o homem, punido por seus pecados, é castigado a viver aprisionado no corpo do lobisomem.

A lenda cresceu e alcançou diversas regiões combinadas a diversas versões da história. Até chegar ao que conhecemos hoje, o lobisomem já teve muitas origens, motivações e modus operandi. Em comum? O mito sempre fala sobre a figura de um homem condenado a viver sob a aparência e os instintos ferozes do lobo.


“...O mito do lobisomem vem de muito tempo absorvendo características culturais por onde passa, e transmitindo sua estrutura que adaptasse aos espaços, aos costumes de diversas regiões. Dos antigos castigos divinos aos pactos demoníacos da idade média, de acordo com o ‘espaço-tempo’ e os momentos que o cercam, deixam suas marcas, encaixam um pedaço de sua história na narrativa, garantindo a sobrevivência de seus valores independente da sociedade que os tenham.” Guilherme Matos em “O Lobisomem: As leituras de um mito sociocultural brasileiro”, 2017.



Mitologia e lenda

A história do lobisomem vai além da mitologia grega e se expande para algo mais místico quando as histórias exploram o imaginário através do terror. Quando o licantropo se torna o lobisomem na Europa Ocidental, o medo toma conta das cidades, que temem sua figura e rezam pelo perdão de pecados para evitar as presas da besta. Por consequência, o lobisomem deixa de ser uma lição sobre punição divina e se transforma — literalmente — em um monstro.

A Hora do Lobisomem de Stephen King (1985), apresenta a monstruosidade da criatura em sua forma mais pura. Quando o castigo cai sobre sua cabeça nas noites de lua cheia, a criatura é desumanizada e se torna um animal feroz que age por instinto, onde o seu único propósito é disseminar o terror.


“Coisas mudam, coisas não mudam e, em Tarker's Mills, o ano está terminando como começou - uma nevasca ululante está roncando lá fora, e a Besta está por perto. Em algum lugar.” A Hora do Lobisomem, 1985.

Daí, já é possível observar o lobisomem transmutar entre o campo da mitologia-mística para o campo lendário-monstruoso. Até chegar neste campo ficcional, passaram-se séculos desde o surgimento da lenda. Mas, quanto tempo leva para o lobisomem sair do campo do monstro? Será que ele deixa de ser um monstro temido dos livros e das lendas? Deixa.



De qual lobisomem estamos falando?

A obra de Stephen King não foi a primeira ou a última adaptação do lobisomem. Na construção de uma narrativa ficcional que vai além da mitologia, a figura do monstro se expandiu para diversos universos explorando desde o campo religioso até a mutação genética. Mais que isso, sentimos na ficção o lobisomem se tornar um clássico do horror nas telas e nos livros, mas também ganhar espaço para explorar além do óbvio em outros gêneros, outros formatos e outras narrativas.


The Wolf Man (1941), por George Waggner

Crepúsculo (2005), saga best-seller da escritora Stephenie Meyer, é uma expressão contemporânea das mudanças do lobisomem ao longo da história. Os lobisomens da saga possuem a própria origem, os próprios costumes e características que combinam o clássico da criatura com uma nova forma de enxergar o lobo e o homem na atualidade. O conflito entre as emoções e a natureza do monstro são reflexos interessantes de uma releitura do clássico do horror, gerando identificação com o público e uma possível nova estrutura do monstro da antiga Europa.

Nesse cenário, o lobisomem sai do campo lendário-monstruoso e se torna uma mitológica-mística-ficcional, que transmutou entre a figura de uma lenda punitivista até uma nova referência ficcional. A porta de entrada para explorar o mito do lobisomem em espaços para além da lenda original foi a ficção, que expandiu o mito licantropo para experimentação — ou melhor dizendo, especulação.



O “vale-tudo” da ficção


Mas então, o que vale

na ficção especulativa?



Vale explorar a narrativa de um monstro aterrorizante até a reestruturação completa da lenda em todas as áreas da ficção. A regra nesses casos é explorar, de qualquer mito, as mais diversas histórias.

E aí vale a questão ética no relacionamento humano-monstro. Vale romance em meio carnificina. Vale humor, suspense e, claro, terror. O conto é seu, a história é sua e a forma como ela vai ser transmitida daqui pra frente depende somente de quem conta.

Explorar os mundos é a prioridade, o mundo dos lobisomens e vampiros; das fadas e das sereias. Explorar a tecnologia, a ciência, o futuro e o passado. Os mitos são amigos e o medo pode ser fonte de inspiração. Só não vale ter medo em falar de mitologia só porque isso já foi feito. A essa altura do campeonato já dá pra perceber que dá para contar várias histórias de uma mesma lenda.



Conteúdo presente na edição de SETEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.

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