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O “Poético” como conceito compartilhado entre a Literatura e a Arte

por Gabriel Mello








Introdução

É comumente percebido que as obras de arte percorrem por um caminho bastante poético. No entanto, este pensamento que é praticamente automatizado, que passou a vingar após diversos processos na construção de uma classe artística, relacionando o sensível à autoria no fazer artístico, ainda pouco é racionalizado.


Difícil, no entanto, é buscar a racionalização de algo que é tão sensível, isto é, a prática artística. Porém, nada ocorre do acaso, e muito menos a Arte está isenta de um esforço racional em se manifestar. Por diversos séculos, artistas, por exemplo, se esforçaram em programar suas estéticas e seus modus operandi. No Barroco, uma das primeiras manifestações programáticas na arte, os artistas eram induzidos ao decoro e à manifestação prática de uma religião dominante. No Impressionismo, por outro lado, os artistas buscaram na Arte o seu estilo de vida, um que os realocava para fora dos ateliês, cada vez mais focados em perceber a dança das formas a partir da perenidade da luz.


E, igualmente esforçados, os artistas contemporâneos buscam para a sua Arte diversas referências, de diversos lugares. Tornar-se-ia, inclusive, um vício da Arte Contemporânea a posse do seu intelecto nas mais distintas áreas de conhecimento. A existência deste texto comprova isso: não há nada mais contemporâneo do que desejar entender a Arte à luz da Literatura.


Inevitavelmente, seja pelo esforço da apropriação da Arte Contemporânea, ou pela natureza colaborativa de um "ser humano produtor cultural" no hoje, o conceito de “poético” carrega e sustenta muito da mentalidade contemporânea dentro da Arte.



Lacuna temporal: do surgimento da Poesia à sua aproximação com o artista.


A palavra “poesia” é originária, assim como o seu significado. É fundadora não apenas de todos os povos, como também das culturas e religiões (LOUREIRO, 1997). Nesse sentido, já entende-se que a história da poesia é anterior à história da escrita, aparecendo nos primeiros registros da maioria das culturas letradas. Não apenas naqueles documentos escritos a que temos acesso, mas o ato de proferir uma poesia é completamente antigo e foi utilizado em muitas culturas para consolidar seus próprios valores.


Ainda que não se considere a poesia na sua imaterialidade, essa forma de expressão foi utilizada em obras bastante antigas, como os vedas indianos (1700–1200) e os Gathas de Zoroastro (1200–900 a.C.). A prática poética parecia ajudar na memorização e na transmissão oral das histórias das sociedades antigas, sendo as epopeias épicas, como a "Ilíada" e a "Odisseia", atribuídas a Homero, na Grécia Antiga, claros exemplos da importância da poesia na preservação da memória coletiva, e na sua celebração de feitos heroicos.


Assim falando, partiu Heitor do elmo faiscante;

e depressa chegou ao seu palácio bem construído.

Não encontrou na grande sala Andrômoca de alvos braços:

é que ela, o filho e uma criada bem vestida tinham se

posicionado na muralha, chorando e lamentando-se.

Quando Heitor não encontrou a esposa irrepreensível,

foi até a soleira e assim falou no meio das servas: (...)


Trecho do canto VI de "Ilíada", de Homero.

Tradução de Frederico Lourenço, em edição da Companhia das Letras/Penguin, publicada em 2013.



Com a ascensão das civilizações clássicas, como a romana e a latina, a poesia continuou a florescer, assumindo formas diversas que refletiam os valores culturais e estéticos da época. Autores como Virgílio e Ovídio exploraram temas como o amor, a natureza e a condição humana, estabelecendo padrões que influenciariam gerações subsequentes.


Já na Idade Média viria o testemunho do desenvolvimento da poesia lírica, caracterizada por uma expressão mais subjetiva e pessoal de emoções. Os trovadores medievais, por exemplo, deram à poesia a sua canônica tradição lírica, que se espalharia por todo o ocidente como regra, enquanto as obras de Dante Alighieri, como a “Divina Comédia," transcendiam as fronteiras mais rígidas entre a poesia e a filosofia.


Já como um objeto ocidentalizado, foi na era romântica, nos séculos XVIII e XIX, que a poesia viu sua ênfase na emoção, na natureza e na imaginação da poesia. Autores como William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge e Lord Byron deram voz a uma busca apaixonada pela liberdade e pela expressão individual. É importante ressaltar a era romântica da poesia porque é neste contexto em que ela começa a se aproximar da arte no seu campo visual.


Neste estágio, tanto o artista quanto o poeta já reconheciam seu trabalho e sua prática como algo único, autoral e pertencente exclusivamente a si; ambos viam suas produções como produtos, resultante de algo tão individual que o “poético” passou a se tornar um conceito compartilhado.


Caminhante sobre o mar de névoa (1818), Caspar David Friedrich. (Imagem/ Reprodução: WikiArt)

Artistas do romantismo se esforçaram em capturar do mundo sua individualidade, investindo cada vez mais nas suas percepções existencialistas.



Poesia na Arte dentro do contexto contemporâneo


No século XX, a interseção entre a poesia e as Artes Visuais atingiu novos patamares, à medida que as fronteiras entre as disciplinas artísticas se tornaram cada vez mais porosas. Movimentos como o surrealismo e o dadaísmo buscaram explorar a convergência entre linguagem verbal e não verbal, rompendo intencionalmente com as convenções tradicionais da expressão artística. Foi neste contexto em que artistas do cânone como Salvador Dalí e Max Ernst, em paralelo a poetas como André Breton e Tristan Tzara, colaboraram em projetos que pareciam ultrapassar os limites das formas artísticas estabelecidas.


“O Anjo da Casa” (1937), Max Ernst. (Imagem/ Reprodução: WoodArt)

A poesia concreta, um movimento literário que emergiu na década de 1950, sobretudo exemplifica a fusão entre a palavra escrita e a visualidade. Autores como Augusto de Campos e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos no Brasil, bem como Ian Hamilton Finlay no Reino Unido, buscaram explorar a materialidade das palavras no espaço da página, aproximando a poesia de uma expressão visual e concreta.


Mas é possível estabelecer o advento da poesia performática nas últimas décadas do século XX como proporcionador de uma nova dimensão ao conceito compartilhado de "poético". Artistas como Laurie Anderson e Patti Smith, que eram tanto poetisas quanto performer, incorporaram elementos visuais e sonoros em suas apresentações, rompendo com as rígidas fronteiras entre a literatura, a música e as artes visuais. Nessa fusão de mídias, a percepção de experiências estéticas tornavam-se mais imersivas e multissensoriais.


Ouça "Because the Night" de Patti Smith: www.youtube.com/watch?v=c_BcivBprM0


Quando de fato chegamos na contemporaneidade, com a Arte Contemporânea também programada, a influência recíproca entre a poesia e as artes visuais persistiu como necessidade, muitas vezes manifestando-se em colaborações interdisciplinares. Projetos que combinavam poesia com instalações visuais, assim como performances e mídias digitais, tornaram-se uma manifestação comum do diálogo de uma Arte/Literatura. Ainda, a proliferação de espaços de exposição que buscavam integrar diferentes formas de expressão criativa, acarretando em todo um repensar dos espaços museais, como galerias literárias e eventos interdisciplinares, refletiu a contínua convergência entre os domínios da literatura e das artes visuais.


É neste cenário que o "poético" transcende as palavras escritas, estendendo-se para além do papel, para abranger uma gama diversificada de meios e práticas artísticas. A interação entre a literatura e a arte na contemporaneidade apenas reforçou a ampliação das possibilidades de significado e interpretação. Sobretudo, o conceito compartilhado de "poético" ainda se perpetua como um fenômeno em constante evolução, reflexo de uma dinâmica de interação entre a Palavra e a Imagem, ambas na busca contínua pela expressão artística autêntica.



Referências

BORGES, Valdeci Rezende. História e literatura: algumas considerações. rth|, v. 3, n. 1, p. 94-109, 2010.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 1995.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. A poesia. MOARA–Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras ISSN: 0104-0944, n. 07, p. 07-16, 1997.

OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Editora da Unicamp, 2013.



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