Creio que, nessa altura do campeonato, vocês, leitores, já saibam que a emoção mais antiga da humanidade é o medo, e o mais antigo dos medos é o do desconhecido. Sim, quem disse isso foi H.P. Lovecraft (1890 - 1937), o pai do horror cósmico e máxima inspiração para nossa mais nova antologia de terror, mas e se tais palavras não fossem apenas mera bravata. E se, por um acaso, nos deparássemos com algo realmente inexplicável, para além da lógica causal. Algo que aguardava por nós? É sobre a relação desses medos que vamos especular hoje analisando os filmes O Monstro do Ártico (1951), de Christian Nyby (1913 - 1993), e Enigma de Outro Mundo (1982), de John Carpenter (1948-).
Primeiramente, é importante ressaltar qual a semelhança destes filmes que os fazem valer a comparação: O filme de Carpenter é um remake de O Monstro do Ártico, que por sua vez é uma adaptação do livro de ficção científica Who goes there? (1938) de John W. Campbell Jr. Ou seja, apesar de estarem apartados por mais de trinta anos, ambos vão abordar a mesma história a partir do prisma sociopolítico de seus momentos. No começo dos anos 1950, os Estados Unidos se colocavam como um dos protagonistas econômicos do mundo e símbolo da Guerra Fria em oposição ao bloco socialista da União Soviética. O país passava por um momento de abundância no pós-guerra que ajudou a consolidar (com muita ajuda do cinema) o chamado “american way of life”.
No filme de 1951, acompanhamos um grupo de pesquisadores e militares no Ártico que se deparam com um objeto não identificado soterrado no gelo há séculos que, ao escavarem, se deparam também com um organismo vivo que desperta curiosidade e temor no grupo, além da necessidade de união contra essa possível ameaça. O longa foi produzido por Howard Hawks (diretor de Onde Começa o Inferno, 1959, e O Rio Vermelho, 1948), lenda da antiga Hollywood e que teve muita influência na direção de Nyby e na forma como conduziu aquela história. O conto original tinha um tom pessimista que não servia num momento tão acirrado de disputa por narrativas e posição, por isso, a história aqui carrega um tom mais leve, os personagens são mais leves, piadistas e possuem um forte senso de união. Algo muito particular desse filme é a presença de um romance entre o protagonista (interpretado por Kenneth Tobey) e a enfermeira Nikki (Margaret Sheridan), o que não tem um forte impacto no desenvolvimento dos personagens, mas reforça esse caráter narrativo da jornada do herói e a imagem do herói americano.
A figura do alienígena, o tropo do ser desconhecido e, por isso, a ser temido é uma forma tradicional do cinema hollywoodiano de representar “o outro”, nesse caso os soviéticos: uma ameaça invisível, que paira sobre a sociedade dos bons costumes a fim de aviltar contra tudo que é correto; ele não possui moral, como nós, pois não é um de nós. Por mais batido que isso possa soar hoje em dia, trata-se de um momento em que esse tropo ainda se configurava na linguagem cinematográfica. Os personagens humanos, por outro lado, retratam um microcosmo da sociedade americana capitalista, que preza pelo individualismo, contra o externo socialista, porém esses mesmos não constituem esse ideal. Muito pelo contrário, trata-se de um coletivo muito mais expressivo em seu conjunto do que nos personagens que são individualmente pouco reconhecíveis, o que— ironicamente— remonta à natureza do comunismo. Para coroar toda essa simbologia, o desfecho não poderia ser outro que não o triunfo daquele pequeno grupo efusivamente americano mandando um recado ao mundo para que vigiem os céus, pois o inimigo pode chegar a qualquer momento.
O Enigma de Outro Mundo, por sua vez, é lançado sob outro prisma. Enquanto o primeiro filme tinha um propósito muito mais “engrandecedor”, nos momentos iniciais da Guerra Fria, o filme de Carpenter traz consigo toda a desilusão que sucede à Guerra do Vietnã, com a morte do heroísmo e o duro retorno dos soldados assolados pelos horrores cometidos em batalha. A vexatória derrota americana contra os vietcongues ajudou a desgastar toda a imagem do poderio americano e seus ideais, o que refletiu num cinema muito mais cínico, niilista e autoconsciente de sua forma (no melhor dos sentidos). Isso deu margem para uma nova onda de filmes de diversos gêneros, especialmente o terror. Nessa sucessão, Carpenter foi apenas um dos diretores escolhidos para trabalhar esse filme que esteve em produção durante toda a década de 1970 e, por sorte, foi o que aceitou.
Na história, um grupo de pesquisadores americanos isolados na Antártida são assolados pela presença de uma figura alienígena milenar que pode assumir os corpos de qualquer pessoa, gerando desconfiança entre os remanescentes. Aqui ao invés de uma afirmação de ideais e a superação do externo pelo coletivo há um sentimento muito forte de desconfiança entre os personagens, dando margem para que Carpenter trabalhasse particularidades em cada um. O sentimento de companheirismo que antes era capaz de superar até eventuais dissidências em 1951 é queimado lentamente como oxigênio comburente em uma sala fechada.
Toda essa tensão culmina diretamente quando, ao descobrirem que a criatura é avessa ao fogo, decidem fazer um teste com amostras de sangue com cada um dos sobreviventes. A inquietante trilha de Ennio Morricone dá lugar a um silêncio ainda mais incômodo. Cada um daqueles personagens apreensivos em momento em que não podemos confiar em ninguém, pois até o protagonista, naquele ponto, poderia ser a criatura. O desfecho da cena já havia sido estabelecido anteriormente quando MacReady (Russell), ao perder no xadrez para o computador, resolve a disputa jogando whisky na máquina. Ao final, após explodir a base e torcer pela morte da criatura, MacReady se senta na neve e aguarda seu fim, quando outro sobrevivente se aproxima e se junta à ele, ambos se encaram em desconfiança, mas não têm escolha se não continuarem juntos.
O segundo filme traz um tom muito mais pessimista, em concordância ao texto original e se permite muito mais camadas através da dubiedade de seus personagens. Particularmente, prefiro o longa de 1982, mas recomendo fortemente que vão atrás do filme de Christian Nyby, pois ele oferece leituras únicas e um entendimento que só seria possível naquele momento. Alguns poderiam dizer que não valeria a pena ver o mais antigo, por estar “datado”, mas acredito que esse texto seja justamente sobre isso: não há filme que não seja datado, pois não há filme fora do tempo, fora da lógica de seu momento. O Monstro do Ártico jamais poderia ser feito nos anos 1980, 1990 ou 2000 e sem ele não teríamos O Enigma de Outro Mundo da forma como conhecemos (o que seria uma perda inenarrável para a sétima arte).
No mais, relembro que muito do contexto político aqui teve de ser compactado para este texto, e recomendo fortemente que busquem por textos complementares dos temas para um entendimento maior. Também recomendo que busquem ver estes filmes e leiam críticas deles. Mas de forma alguma recomendo que olhem para o céu esta noite.
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