A criação de conteúdos culturais e midiáticos, principalmente aqueles que se propõe a ter ampla circulação, é um processo que exige sensibilidade e conhecimento, principalmente quando pretendem dialogar com símbolos, ícones e imagens mitológicas de sistemas religiosos ancestrais.
No entanto, o que vem dificultando muito o desenvolvimento desta responsabilidade é o não reconhecimento de figuras mitológicas como figuras também religiosas. Os ícones, os ritos e os mitos de civilizações ancestrais – como os gregos, celtas, egípcios, nórdicos e muitos outros – são frequentemente abordados pela cultura pop como meras "histórias de entretenimento", desconsiderando seu significado espiritual não só para as religiões antigas, mas para pagãos modernos que – pasmem! – ainda existem.
E nesse cenário dominado pela hegemonia de religiões monoteístas, tradições religiosas de cunho politeísta/pagão ainda lutam por reconhecimento, legitimidade, liberdade religiosa e respeito. Toda essa complexidade torna a representação de figuras mitológicas em mídias populares um campo de trabalho bastante delicado, tendo em vista que, na maioria das vezes, apenas serve para desconsiderar, banalizar ou reforçar maus estereótipos de crenças profundamente pessoais de uma minoria religiosa.
Quem nunca viu por aí a Deusa Afrodite sendo retratada como um símbolo sexual erótico? Ou Hera como uma esposa compulsivamente ciumenta? E Hades como o próprio diabo?
E é a partir deste contexto que proponho um estudo de caso sobre o jogo "Hades" e o quadrinho "Lore Olympus" para entendermos melhor a responsabilidade na criação de mídias de alta circulação quando estas se apropriam de ícones mito/religiosos.
O Jogo "Hades" como estudo de caso:
"Hades" foi desenvolvido pela empresa Supergiant Games e é um exemplo recente que despertou discussões sobre a representação de figuras mitológicas e a responsabilidade dos criadores ao explorar temas religiosos e espirituais como entretenimento. No jogo, o protagonista Zagreus é apresentado como o filho rebelde de Hades, o Deus do submundo, numa narrativa que envolve uma jornada de fuga de um importante plano helênico. Embora a narrativa e os personagens sejam inspirados na própria mitologia grega, a equipe de desenvolvimento optou por uma abordagem mais "criativa", sem compromisso com o respeito aos arquétipos daqueles ícones apropriados, reimaginando os Deuses e os Heróis de maneiras que não necessariamente correspondem às fontes históricas, às mitológicas ou ao culto pagão helênico.
A liberdade criativa em obras de ficção, como em "Hades", levanta a questão de como figuras religiosas e mitológicas são tratadas no entretenimento. Principalmente no que se trata do uso de ícones helênicos para criação de mídias populares.
Neste ponto, é importante perceber que não há uma homogeneidade entre "certo" e "errado" para os pagãos. Porém, há ideologias a serem respeitadas dentro de cada vertente religiosa.
Para os helenos, por exemplo – sejam os antigos ou os contemporâneos –, onde consigo me aprofundar melhor no debate, o uso de figuras religiosas para criar obras midiáticas nunca foi um problema. Se não fosse por isso, Eurípides, Sófocles, Ésquilo, Platão e até mesmo Homero não teriam existido. Pelo contrário: a apropriação dos Deuses era uma forma de culto. Porém, vale ressaltar que havia algo em comum nas obras destes autores: todas elas se comprometiam a não desviar, de forma alguma, dos arquétipos, dos símbolos e das histórias dos Deuses; e o que vemos acontecer com frequência na atual cultura pop é o contrário.
É evidente que "Hades" se insere no contexto de uma obra de ficção, e sua proposta não é fornecer um estudo rigoroso da mitologia grega – assim como "Édipo Rei", "Ilíada", "Odisséia" ou "As Bacantes" não se propunham. No entanto, as liberdades criativas tomadas com personagens como Zagreus, e até mesmo através da caracterização de outros, podem ser vistas como problemáticas ao distorcer figuras reverenciadas enquanto reafirmam esteriotipias negativas de símbolos que, por si só, já carregam um profundo significado religioso.
O mito original de Zagreus, por exemplo, é obscuro e está associado aos cultos de mistério a Dionísio, ou ao próprio arquétipo do renascimento. E por mais que esses temas sejam centrais no mito, já na antiguidade eles eram amplamente questionados. Como, por exemplo, o fato de Zagreus ser a prole de Zeus com Perséfone, nascido de um abuso àquela que foi canonizada virgem; ou pela sua imagem nunca ter conseguido se consolidar em meio aos ritos anuais em diversas pólis por toda Hélade. Tudo isso já indicava que a figura de Zagreus, além de muito polêmica, exigiria um cuidado redobrado ao ser apropriado.
A comic "Lore Olympus" como estudo de caso:
"Lore Olympus", de Rachel Smythe, é uma das webcomics mais populares dos últimos anos, publicada inicialmente na plataforma Webtoon e posteriormente adaptada para o formato impresso. A série reimagina a mitologia grega em um contexto contemporâneo, focando principalmente no relacionamento entre Hades e Perséfone, com uma abordagem visual e temática voltada para uma audiência moderna.
Smythe opta por dar à mitologia uma roupagem que mescla drama, romance e comédia, abordando temas complexos como trauma, assédio e relacionamentos tóxicos, humanizando os deuses como personagens de uma trama moderna e cotidiana. Como em outras representações populares, "Lore Olympus" também suscita discussões entre aqueles que veem os deuses como símbolos de culto, e não apenas personagens de ficção.
Na série, os deuses são representados de maneira simplista, a ponto de perderem muito de seu caráter mítico, ancestral e espiritual. Mais preocupante é como seus mitos e arquétipos são diluídos, banalizados e satirizados, o que resulta em um apagamento cultural e simbólico.
Para os pagãos, assim como para qualquer outra vertente religiosa, os mitos representam uma ponte sagrada e lúdica que conduz os praticantes a uma moralidade e espiritualidade próprias. Através desses mitos, a conexão com o sagrado se fortalece, e desconsiderar essa relação ao apropriar a mitologia – que, como já expliquei, para os pagãos helênicos não é um problema – significa apagamento através da violência.
Em "Lore Olympus", Perséfone é retratada como uma jovem vulnerável e emocionalmente frágil, muitas vezes necessitando de proteção, enquanto Hades assume um papel de “salvador” romântico. Essa representação reforça a ideia de uma Perséfone passiva e submissa, ignorando seu papel arquetípico como Deusa forçada a um destino sombrio.
No mito original do rapto de Perséfone, o tema central é o abuso sexual, e, embora haja interpretações diversas, o mito foi formulado para ensinar sobre as implicações de um ato que era então amplamente normalizado. O lado pedagógico do mito está nas consequências da violência: Hades e o próprio mundo sofrem pelo abuso cometido contra Perséfone. Quando jovem, ela era conhecida como Koré e auxiliava sua mãe, Deméter, a cultivar e cuidar das terras férteis.
Após o abuso, Deméter amaldiçoa o mundo a viver em terras estéreis por metade do ano – outono e inverno – enquanto sua filha, agora chamada Perséfone, assume o papel de esposa de seu abusador no submundo. "Lore Olympus", ao moldar Perséfone como uma personagem insegura e emocionalmente dependente de Hades, contradiz essa representação original.
Por onde andar?
Criadores de conteúdos culturais e de entretenimento têm a liberdade de explorar temas como mitologia, religião e espiritualidade. Contudo, essa liberdade traz também a responsabilidade de representar esses temas com respeito e compreensão das tradições envolvidas.
Para deixar este ponto mais claro, basta inverter o jogo. Imagine uma mídia de alta circulação cuja proposta é trabalhar sobre os ícones de religiões cristãs, judaicas ou islâmicas. Agora, imagine a polêmica que surgiria caso esta mídia construísse personagens em completa desconexão com os dogmas e com o imaginário daquela religião de onde apropriou os personagens. Complicado, não?
Quando mitologias são adaptadas para o contexto moderno, existe o risco de reforçar estereótipos, deturpar significados ou até banalizar símbolos sagrados para determinadas comunidades.
E por isso o tratamento recente dado aos mitos pagãos, para mim, é sintomático de uma tendência preocupante: o apagamento da complexidade religiosa e espiritual pagã em prol de narrativas simplificadas e comerciais. É preocupante a maneira que símbolos tão ricos sejam distorcidos e comercializados sem o devido cuidado com suas origens e com as comunidades que ainda hoje os reverenciam.
Se continuarmos a tratar mitologias antigas apenas como entretenimento descartável, estaremos contribuindo para a contínua erosão de culturas minoritárias e do respeito que lhes é devido.
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