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Onde está o Monstro?


Gael García Bernal como Jack Russell em Lobisomem na Noite (2022)


Introdução

Você olha para baixo da cama e… nada. “Onde está o monstro?”, você se pergunta.

A questão não recai sobre a ontologia da criatura; se ela realmente está lá, mas quando criança - ou, quem sabe, ainda adultos - assumimos que o monstro, de fato, está lá. Nos observa dormindo e espreita nosso sono de dentro do armário. Viola a santidade do nosso quartinho e não nos deixa opção a não ser nos escondermos sob a segurança absoluta do cobertor quentinho. O problema é: qualquer barulhinho do lado de fora estará longe do alcance de nossos olhos, só nos permitindo imaginar o que ele vai fazer enquanto não podemos ver, e pior: quando finalmente dormimos.

Neste ensaio, o intuito é investigar e compreender características ficcionais, tanto na literatura, como cinema, por exemplo, que cerquem o conceito de “monstro”. As questões fundamentais que abastecem esta discussão são: (I) O que é um monstro, afinal? (II) Onde eles se escondem? (III) Os monstros mudam?


O que é o monstro?

Segundo o Dicionário Oxford, há algumas definições bastante próximas do que vem a ser um monstro, com enfoque especial na sua constituição fisiológica: “Criatura de grande porte”, “amálgama carnal de elementos humanos e animalescos”, “animal ou planta deformados”; são características que emprestam natureza física à definição geral do conceito de monstro. A exemplo destas características, temos a inominada Criatura de Frankenstein, do romance homônimo Frankenstein (1818) escrito por Mary Shelley, no qual a Criatura é vista com repugnância por seu próprio criador, o médico insano Dr. Frankenstein. O asco, dotado de tons bíblicos, toma a forma de ‘criador-criatura’, representando a quintessência do horror do médico em via dupla: tanto pelo susto com a então viva e profana estátua de carne, quanto pelo auto-nojo e lamento por seus próprios atos, ainda que transferindo a amargura destes para a própria figura da Criatura.

Embora a definição fisiológica de monstro expresse o horror imediato e visual com forma antinaturais, ainda há outra definição do Oxford sobre monstro: “Algo extraordinário e não-natural, um prodígio”. A Criatura de Frankenstein, ao refletir sobre a própria condição, também sente horror de si mesma enquanto um fenômeno antinatural, e assim como seu criador, sente horror de um ato de criação que agride as leis da natureza. A diferença entre a Criatura e o médico reside nas perguntas: Quem é o monstro verdadeiro, o profano criador ou a criatura deformada?

O romance Frankenstein acabou tornando-se um marco do gênero da ficção científica, por abordar, principalmente, esta dúvida sobre a natureza da monstruosidade como uma pedra fundamental da ética: até onde pode a ciência? Qual o balanço entre o que é desejado e o que é necessário para sua obtenção? O próprio monstro de Frankenstein contém a resposta: a “fronteira ou borda” entre o desejado e o rejeitado é a medida ético-temática que perpassa tanto o romance quanto o conceito de monstro.

A ideia de fronteira pode ser compreendida, de forma simples, como os limites culturais difundidos por conjunturas sociais ao longo do tempo (História) e do espaço (Geografia), ou seja, como cada povo, seja em seu passado ou presente, tenha seu conjunto de valores e morais. É difícil encontrar um povo ou algum período da história em que a frieza e a brutalidade de um assassinato sejam aceitáveis; logo, o ato de tirar uma vida é aquém da fronteira, e seu executor o acompanha, desloca-se para “fora” da sociedade.

Em Drácula (1897), há a violência e bestialidade que caracterizam o Conde Drácula como monstro. O tema do vampirismo como uma doença completa a alegoria que carimba a monstruosidade do Conde, tornando-o, portanto, um amálgama de profanidade cultural e bestialização corporal, empurrando-o para bem ao fundo da fronteira. Ainda assim, Drácula ainda é uma figura de forte sensualidade e apelo sexual; temas bastante palpáveis na adaptação cinematográfica Drácula de Bram Stocker (1992): ora um homem desejado, ora uma fera sedenta. O monstro em Drácula, entretanto, é ambas as coisas simultaneamente.

Uma obra que retrata a dicotomia entre bestialidade e desejo é o conto de fadas A Bela e a Fera e suas adaptações para o cinema. Tão elegante quanto violento, horroroso no início e belo ao final; a Fera-Príncipe incorpora a dualidade simultaneamente, sendo visto como monstro pela comunidade e como príncipe pela heroína: a Bela.


Onde está o monstro?

Vimos até agora apenas exemplos do que podemos chamar de “monstros humanos”, ou representações de monstros mais próximos do que é a experiência de ser humano. Estes, apesar de estarem além da fronteira social, ainda emulam valores e traços que permitam a identificação, como o desejo sobre Drácula e a angústia da existência pela Criatura de Frankenstein. Essas representações são vistas como “impurezas” pela ótica da cultura, e podem mesmo ser redimidos ao longo de suas histórias.

A criatura Godzilla, entretanto, é um monstro que não se encaixa nessa descrição. Sua primeira aparição foi na película japonesa homônima Gojira (1954), apresentando-se como uma força apocalíptica da natureza em forma de lagarto gigante. A alegoria da criatura mutante com a brutalidade nuclear norte-americana em fins da Segunda Guerra Mundial narra uma ameaça implacável; um monstro que não se esconde como o Drácula ou como a Fera, apenas se ocupa em demolir e devorar a cidade de Tóquio.

Ainda no contexto cultural japonês, temos a Kyuubi (Ou Kurama), a Raposa-de-nove-caudas, do mangá/anime Naruto (1997), que segue a cartilha de animal gigante com enorme potencial destrutivo, que bestializa automaticamente seu portador, o protagonista Naruto. Acontece que Naruto contém o espírito da criatura em seu corpo, levando seus compatriotas a o desprezarem, como se a própria Kyuubi se confundisse com a figura do protagonista. Ser monstro acaba por tornar-se fardo, em oposição ao desejo - não excluindo-se o mesmo, afinal o poder da raposa é ambicionado por outros personagens. Entretanto, o passado de Kurama é abordado, conferindo-lhe certa “humanidade”, o que permite uma aproximação afetiva do protagonista para com ela. A mesma criatura foi de monstro a aliado, espelhando a jornada de Naruto, que balançou entre um ressentimento “monstruoso” ao abraçar o ódio e a vingança ou tornar-se um herói ponderado, cumprindo o que era esperado dele.

É possível inferir, portanto, que para além das características fenotípicas e simbólicas da constituição do monstro abordadas aqui, o comportamento é essencial para se entender o conceito “monstro”. Entende-se como comportamento um arcabouço semântico que remete a expectativas sociais e psicológicas. É claro que um lobo inspira medo em seres humanos por seu comportamento predatório natural. Isso não faz monstro, entretanto. Agora, um lobo correndo sobre as duas patas e manuseando uma arma causa um terror adicional ao quadro, implicando que não um lobo usual, mas um monstro.

Terror, aliás, é um ingrediente indispensável para o conceito de monstro. Embora tenha sido abordado que uma das possíveis características possíveis para um monstro é o desejo (desejo sexual - Drácula, desejo de poder - Kurama), o medo está intrínseco no código narrativo das monstruosidades. O mangaká Junji Ito (1963-) tem boa noção disso. Em suas obras, o aspecto visual é arrebatador e imprescindível para o impacto final da narrativa. Entretanto, o que calcifica seu estilo de terror é apresentar personagens com comportamentos estranhos ou mesmo incompreensíveis às vezes. Seja uma cidade tornando-se aos poucos obcecada por espirais em Uzumaki (2000) ou uma vizinha de hábitos peculiares em Contos de Horror da Mimi (2022), uma sensação de monstruosidade ronda a atmosfera das obras, mesmo que as figuras de Junji Ito não se apresentem como os monstros clássicos a exemplo de Drácula e da Criatura de Frankenstein. Um monstro, então, tem que se adequar ao modelo clássico para ser percebido como tal?


O monstro muda?

No século XX, as ciências e o método científico disparam significativamente com as Grandes Guerras. A racionalidade torna-se a lente favorita, e praticamente obrigatória, de se enxergar e compreender o mundo. Parece não haver mais espaço para monstros, visto que tudo pode ser compreendido e catalogado. Entretanto, não é bem isso que acontece.

O psiquiatra austríaco Sigmund Freud, em seu estudo Das Unheimliche (O Estranho) de 1919, usa da linguagem - o jogo entre as palavras do alemão: heimlich e unheimlich, que podem ser traduzidas como “típico” e “estranho”, respectivamente - para explicar como interpretamos o que nos é incômodo. Retomando o exemplo da seção anterior, temos o lobo (heimlich) e o lobo bípede (unheimlich). A mesma figura, mas com uma diferença de percepção por nossa compreensão.

Este conceito de Freud é um escopo interessante para compreendermos como os monstros têm espaço atualmente. Antes, é necessário compreender que a fisicalidade das criaturas já não é um tema com o mesmo significado que antes, fechado em si mesmo. A monstruosidade corpórea está ainda mais subordinada à narrativa maior, retomando e expandindo os conceitos anteriores.

O primeiro exemplo é do horror pessoal, tão palpável atualmente que pode ser encontrado em qualquer pessoa próxima: Serial Killers. O interesse mórbido atual pelas figuras dos assassinos em série se deve à expansão dos conceitos de desejo; provocado tanto pela curiosidade mórbida de compreender o “labirinto” figurado que vêm a ser as mentes dos assassinos quanto por uma atração - também mórbida - por suas figuras. O unheimlich, nesse caso, é tão repulsivo quanto magnético; um paralelo ao Drácula. O monstro, portanto, não só tem rosto humano comum, mas está em qualquer lugar.

O outro exemplo é um terror incorpóreo, conceitual. Não que o monstro corpóreo não esteja envolvido, mas a expectativa, o conceito e a ideia do monstro são suficientes para causar pavor. Rastreando-se a origem deste tipo de horror, é possível chegar à obra do escritor estadunidense H.P. Lovecraft (1890 - 1937) e seu Cthulhu Mythos. Uma investigação rápida e nota-se que a obra do autor tem suas bases na xenofobia e no uso do “outro” que não é branco nem americano traz consigo uma carga de desconhecimento assustador. O monstro não é uma figura naturalmente deformada nem violenta, mas carrega potencial monstruoso ilimitado com suas “raízes estrangeiras”; o unheimlich na forma de alteridade.

A apatia moderna pela cidade e seus símbolos, somada a uma estranha conceitual “lovecraftiana”, cria uma falta de identidade grave e ansiosa para com conceitos banais. A cidade torna-se um espaço frio e propenso a monstros escondidos, que contam a falta de solidariedade no sentido mais sociológico. É com isso que conta o palhaço Pennywise, de It, em suas versões de 1990 e uma duologia, em 2017 com a parte I e 2019 com a parte II. O palhaço tempera suas vítimas, todas crianças e adolescentes, com medo, para tornar sua caçada mais proveitosa. A indiferença dos adultos com as questões das crianças gera um espaço dentro do espaço da cidade; um lugar estranho, vazio e anárquico, onde o palhaço macabro pode agir à vontade.


Considerações finais

É uma tarefa complexa e um tanto ingrata tentar determinar o que é um monstro, afinal. Este ensaio, entretanto, cumpre seu papel de cercar características comuns e formas nas quais um monstro é percebido. Ainda assim, a literatura, o cinema e outras mídias modernas, como os games, capturam as ideias e as remexem, de forma que subversões conceituais e interpretações surjam, como é o caso do filme Monstros S.A. (2001), que inverte o unheimlich e coloca os monstros como típicos cidadãos de uma cidade que em muito emula a vida burocrática de Nova York.

E claro, enquanto o ser humano tiver angústias, ansiedades e expectativas opressivas, os monstros estarão aí para nos ajudar a respondê-las, combatê-las e compreendê-las.



Conteúdo presente na edição de SETEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.


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