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Os contos de fada sombrios em "O último desejo", por Andrzej Sapkowski

por Matheus Maciel





Atenção: A análise a seguir contém spoilers do livro.


“Em cada conto de fadas, há um grão de veracidade - diz baixinho o bruxo.”

Esta citação marca o final do conto homônimo “Um grão de veracidade” e calcifica o tema central do livro. Explico mais adiante.


O último desejo é um livro de contos de fantasia sombria escrito pelo polonês Andrzej Sapkowski em 1993, sendo trazido à língua portuguesa, no Brasil, em 2011 pela editora Martins Fontes. O livro tem como protagonista o bruxo (wiedźmin no original polonês, que pode ser traduzido como o masculino de wiedźma, que significa “bruxa”, portanto “bruxo”. Em inglês, witcher foi uma tradução criativa que buscou emular o mesmo sentido que no polonês; ou seja, de witch, popularmente traduzido como “bruxa” no feminino mesmo, o sufixo -er em inglês masculiniza o termo) de cabelos brancos Geralt de Rívia, que tem como profissão matar criaturas “míticas” que possam ser ameaças a uma pobre vila ou um estorvo político a um nobre. O termo míticas fica entre aspas, pois as noções de ciência e folclore se misturam no universo da saga. Ah, claro, O último desejo serve como prólogo para A saga do Bruxo Geralt de Rívia, que atualmente conta com sete livros.


Neste primeiro volume da saga (e no segundo também, pretendo falar dele aqui na coluna) o autor trouxe a “narrativa-moldura” como forma de contar as histórias, amarrando-as. Visto que o bruxo nasceu de um concurso literário de contos, um emaranhado de histórias desconexas e parcamente interligadas poderia ter emergido, mas o autor optou pela técnica de emoldurar a narrativa. Essa técnica consiste em criar histórias separadas que entreguem uma narrativa maior, a “verdadeira” história acontecendo no meio, sendo “emoldurada” por outras narrativas. A escolha se mostrou apropriada por casar tanto seu rico universo com o desenvolvimento do protagonista, realizado de forma interessante e engajante.



O universo que cerca Geralt e os demais personagens, que vão sendo cuidadosamente apresentados, é sombrio, melancólico e ricamente povoado de perigos, apresentando uma atmosfera que faz jus ao termo “fantasia medieval”, mostrando uma leitura precisa do que poderia ser o leste europeu por volta do século X. Os personagens, por sua vez, têm suas peculiaridades e personalidades bem desenhadas que flertam com a caricatura, mas se analisados sob a minúcia de uma lupa, mostram complexidade e são bem realistas. Um grande diferencial da saga do bruxo Geralt, pelo que pude notar, é que é comum ao discurso dos personagens uma abordagem mais ácida e cínica em relação ao mundo, à política e mesmo ao que é sobrenatural para eles. Mesmo Geralt sendo alguém tão austero e frio, sempre surpreende com uma piadinha espirituosa ou um comentário espinhoso.

O que acaba por selar a obra - e a própria série de livros - como uma representante do subgênero da fantasia sombria é sua ambientação.


Como dito anteriormente, o clima é de um leste europeu sujo, cinzento e perigoso, tanto pela agitação violenta de um mundo medieval que se metamorfoseia com guerras o tempo todo quanto pela incerteza de que criatura espreita na floresta mais próxima. O papel de Geralt, inicialmente representante da ordem dos Bruxos de Kaer Morhen, que têm por serviço exterminar o perigo das monstruosidades e entidades sobrenaturais, com uma pegada de Ghostbusters medieval, mas sem a mesma comédia pastelão. Os bruxos, portanto, estudam e catalogam por anos as criaturas, ou melhor ainda: são bestiários vivos. Devem saber tudo sobre o que enfrentam, ter um preparo afiado em combate e saberem se adaptar às situações e suas casualidades.


Para tal objetivo, os bruxos são privados de sentimentos mais complexos e de demasiada empatia. O pulo do gato do livro, portanto, vem com o trabalho de dois fatores em cima desse status quo: Primeiro, a complexidade dos sentimentos humanos e da razão. Se os bruxos tanto estudam as criaturas, ao paralelo de como fazem hoje em dia os biólogos, a empatia é uma questão inevitável, visto que uma filosofia de vida somada à uma compreensão mais profunda das condições das “bestas” pode fazer um gesto ser interpretado como um ato empático. No já citado conto Um grão de veracidade, por exemplo, Geralt não hesita em jantar com um nobre amaldiçoado que todos evitam e morrem de medo. Cordialidade amistosa ou frieza profissional?



O segundo fator retoma a primeira frase da coluna de hoje: “Em cada conto de fadas, há um grão de veracidade”. O universo mágico de O último desejo gira em torno dessa ideia; o nebuloso entre o folclórico e o real, visto que este é um universo onde as lendas e histórias populares europeias ganham vida. Você pode, qualquer dia, estar lavando roupa em seu quintal e ganhar o “carinho” de um lobisomem perdido por aí. Os tão famosos jogos eletrônicos da série The Witcher abraçam tanto a narrativa-moldura, quanto o clima investigativo sobrenatural quanto a ética e as questões sobre folclore, e não seria nenhum exagero dizer que a fama do bruxo Geralt de Rívia se deve principalmente à boa execução dos jogos quanto a estes aspectos.


Se acabar parecendo que os contos populares são apenas referências e uma composição divertida de universo, digo que o livro vai bem mais fundo, pois o cerne das aventuras de Geralt é uma releitura sensível e atenciosa das origens dos tão populares contos de fadas, que ficaram famosos tanto pelos irmãos Grimm quanto pelas animações da Disney. Vemos um caso de Branca de Neve e os Sete Anões no conto O mal menor, no qual a “Branca” aqui se chama Renfri que, lutando contra uma profecia sombria que destruiu sua vida, reúne seu bando de anões, e no melhor estilo Dungeons & Dragons sai pilhando e vivendo em tavernas por aí. A Bela e a Fera, uma história com os traiçoeiros djinns e elfos quase tolkienianos aparecem nos outros contos, sempre atravessado pelo interlúdio A voz da razão, que apresenta Geralt no presente, em conversas com seu amigo bardo Jaskier e a clériga Nenneke, apresentando ao leitor sua personalidade e possivelmente preparando o terreno para os romances subsequentes.


Sendo esta a primeira experiência literária trazida à coluna, um sistema de nota avaliativa seria bem comum para nortear se o livro vale ou não a pena ser lido. Entretanto, não acredito neste sistema; penso que cada livro é dotado do próprio valor e seus debates, tema, estética e narrativa são recheados de subjetividade e ricos à própria maneira. Portanto, entenda-se que só do livro ter uma resenha aqui na coluna, ele já é recomendável em algum grau. Logo, por que não mergulhar de cabeça no mundo sombrio e perigoso de O último desejo?


P.S.: Recomendo o artigo da casa: O Deslocamento Entre os Termos ‘mito’ e ‘folclore’ na Produção Especulativa Nacional Como Repressão Às Cosmologias Originárias, escrito pelo Gabriel Mello. Sugiro a leitura dele antes de partir para a saga do bruxo Geralt de Rívia, para que os conceitos de folclore e mitologia enriqueçam os temas e situações da obra.


Leia o artigo de Gabriel Mello aqui


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