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Os fantasmas que ecoam fantasmas em "A Maldição da Residência Hill"

Atualizado: 2 de jun.

Nathália Bonfim é ilustradora e colunista na Revista Especular








“Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham. A Casa da Colina, desprovida de sanidade, se erguia solitária contra os montes, aprisionando as trevas em seu interior; estava desse jeito havia oitenta anos e talvez continuasse por mais oitenta. Lá dentro, paredes continuavam de pé, tijolos se juntavam com perfeição, assoalhos estavam firmes e portas estavam sensatamente fechadas; o silêncio se escorava com equilíbrio na madeira e nas pedras da Casa da Colina, e o que entrasse ali, entrava sozinho.”

É com este excerto que se iniciam tanto "A Assombração da Casa da Colina," livro de 1959 da autora Shirley Jackson, como "A Maldição da Residência Hill," série de 2018 do diretor Mike Flanagan, inspirada diretamente nos eventos do livro.


Na obra de Shirley Jackson, as personagens Eleanor, Theodora e Luke são convidadas pelo Dr. Montague para passar um tempo na misteriosa Casa da Colina, como parte de um experimento. Já na série, a história gira em torno da família Crain: Hugh e Olivia Crain são os pais; Eleanor, Theodora, Luke (que na série são irmãos), Steven e Shirley Crain são os filhos do casal. A série foi o meu primeiro contato com a obra de Shirley Jackson; por esse motivo, ela será o objeto de análise dessa coluna.


Muito se tem discutido sobre a forma como o terror é construído hoje em dia. Não nos contentamos mais apenas com sustos - os famosos jumpscares - ou caricatas retratações de espíritos ou demônios. Não que não existam filmes bons nesse estilo, vide o clássico "O Exorcista" (1973) ou a série contemporânea de filmes "Invocação do Mal" (2013 - 2023); embora eu, particularmente, sinta que nós, fãs de terror, temos cada vez mais buscado no cinema do gênero algo que aborde de forma mais profunda os medos construídos dentro da nossa própria mente do que aquilo que nos é mostrado superficialmente através de imagens figuradas e animificadas.


Afinal, o que te deixa com mais medo: a solidão ou um possível fantasma no corredor?

O gênero do terror tem o poder de transcender a mera evocação de sustos sobrenaturais, adentrando o âmago de nossos receios mais íntimos e insondáveis como seres humanos. Ao invés de se limitar a meras representações de assombrações ou entidades sobrenaturais, ele se imerge nas profundezas de nossa psique, explorando temas intrincados como a solidão, o luto, a melancolia e outros arquétipos sombrios que ecoam em nosso cerne existencial.


O fato de algumas obras abordarem situações tão cotidianas e relacionáveis nesse sentido acaba servindo como um espelho distorcido de nossos próprios medos e ansiedades, e é daí que vem a verdadeira catarse em "A Maldição da Residência Hill". Apesar de ser uma obra sobre uma casa assombrada (e de fato, bastante assombrada), o que nos deixa apavorados é o destino das personagens, em especial de Eleanor “Nell” Crain, diante da morte trágica e precoce de sua mãe.


Basicamente, cada membro da família Crain encontra uma forma de lidar com o luto. O pai acabou se tornando uma pessoa distante da família; Theodora se afoga nos estudos acadêmicos; Steven escreve um livro sobre a casa onde moraram e sobre o acontecido (aqui, claramente uma referência ao livro original de Jackson), o que se torna, futuramente, motivo de ruptura entre os irmãos; Shirley se torna agente funerária; Luke se entrega ao vício em drogas e Nell… Bem, você terá que assistir para descobrir. Nada de spoilers por aqui.


Como a série tem duas linhas temporais, uma com os protagonistas crianças durante o tempo em que moraram na casa, e outra com eles adultos, é possível acompanhar e entender como os acontecimentos moldaram as personalidades de cada um dos filhos Crain (inclusive, a série é um ótimo material para estudo de personagem). Vimos como Nell e Theodora têm grande facilidade para sentir e perceber o sobrenatural, enquanto Steven, o irmão mais velho, sempre foi muito cético em relação ao tema, mesmo diante do acontecimento que faz a família ir embora de vez da Casa da Colina.


Uma coisa interessante é que durante a série não nos é revelado com detalhes o que aconteceu na Casa que a tornou assombrada. A história se constrói aos poucos, quando, por exemplo, vemos um casaco estranho pendurado em um cabide que não devia estar onde está ou quando enxergamos nas sombras a silhueta de uma figura humana esquisita.

Na verdade, existem vários fantasmas na Casa da Colina. Às vezes você tem que os procurar, mas às vezes eles mesmos procuram você. É até divertido de certa forma pausar as cenas de plano aberto e ver se não tem um ou dois escondidos em algum lugar.

Mas, como eu falei, o terror contido em "A Maldição da Residência Hill" não está contido nos fantasmas, mas sim em como esses fantasmas ecoam nos nossos próprios medos já existentes em nós como seres humanos.


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