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Os filhos perdidos de "Twin Peaks"






Entre dias nublados e noites silenciosas numa floresta soturna, às margens de um lago, o corpo de uma jovem é encontrado. E cabe ao FBI descobrir quem matou a jovem e doce Laura Palmer (Sheryl Lee). É a partir desta premissa que nasceu a série Twin Peaks (1990-2017), série criada por Mark Frost e David Lynch (Cidade dos Sonhos, 2001; Veludo Azul, 1986), sobre a investigação de um assassinato que se desenrola em eventos sobrenaturais. Um marco da televisão norte americana, o seriado foi responsável por popularizar ainda mais o modelo de séries “serializadas” (com arcos narrativos complexos ao longo das temporadas) e seus mistérios que perduraram por mais de 20 anos em suas 3 temporadas, influenciou o surgimento de diversas outras obras como Lost (2004 - 2010), The Leftovers (2014 - 2017) ou Riverdale (2017 - 2023).


A série que misturava o melodrama familiar com suspense policial tinha ainda um forte viés para o terror surrealista, característica intrínseca do cinema de Lynch. Ao buscar uma representação visual para a psique dos personagens e dar preferência à exposição visual, confiando na potência da imagética encenação em contradição às explicações narrativas, a obra permitia um mergulho mais visceral nos sentimentos de seus personagens, fazendo o espectador sentir o mesmo, ainda que não compreendesse. Essa forma de construção da direção (também chamado de lynchiano) foi popularizada por Twin Peaks e muito utilizada, para além do cinema, nos jogos.



Em 2001 a desenvolvedora Konami dava sequência a um clássico do PlayStation 1 que foi responsável por assombrar diversas crianças e jovens no final dos anos 1990. Silent Hill 2, um jogo muito importante na galeria do PlayStation 2, que ganhará um remake ainda esse ano, fora um marco  para os jogos de terror. Na trama, James Sunderland retorna à nevoenta cidade de Silent Hill após receber uma carta de sua esposa, que faleceu anos atrás. Este jogo é significativamente mais cerebral que seu antecessor, não só em gameplay, com a adesão massiva de quebra-cabeças, mas também em temática e narrativa. Enquanto no primeiro o mal da cidade se manifestava através de um culto, neste nada é tão simples. Muito da história é entregue apenas enquanto fragmentos ou sugestões de que são apenas alucinações, como ambientes e personagens que mudam inexplicavelmente de aspecto, ou a carta de Mary se tornando cada vez mais borrada no decorrer da história, como se sequer existisse.


Embora alguns dos designs se repetissem do primeiro jogo, aqui muitos dos inimigos não são apenas monstros ou criaturas, mas manifestações físicas de medos, traumas ou abstrações dos personagens, a exemplo dos ‘Mannequins’ que retratam a repressão sexual de James através de corpos femininos desfigurados. O ‘Pyramid Head’, símbolo da franquia introduzido nesse jogo, foi criado para ser o carrasco de James e do jogador, uma manifestação de sua culpa e seu desejo por punição, casando as temáticas do jogo com a inspiração no livro Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. 


O jogo, por sua vez, usa de uma liberdade que Twin Peaks não possuía para introduzir muita violência gráfica a fim de aumentar o nosso desconforto, acompanhado de uma trilha melancólica composta por Akira Yamaoka, que remete à sensação de um tempo e um espaço perdido. Silent Hill 2 assemelha-se muito ao filme Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (David Lynch, 1992) na medida que ambos se enfocam em destrinchar os sentimentos e as dores de seus protagonistas, ao mesmo tempo que desmistifica as figuras de Mary (Silent Hill) e Laura (Twin Peaks) a fim de humanizá-las.


Em 2010 a desenvolvedora finlandesa Remedy, conhecida até então pelos jogos de Max Payne, entregou ao mundo um survival horror (jogo de terror e sobrevivência) sobre Alan Wake, um escritor de livros de mistério e horror que, durante um bloqueio criativo, viaja com sua esposa para a pacata cidade de Bright Falls, a fim de conseguir terminar seu livro. Na cidade, diversas alucinações de projetos não finalizados começam a assombrar Alan à medida que sua esposa é dada como desaparecida e pode ser que sequer tenha existido. 

Aqui há inspirações muito mais diretas, a construção idiossincrática de uma cidade interiorana, um personagem perdido em pesadelos e até elementos marcantes da série como o “RR Dinner”, chamado no jogo de  “Oh Deer Dinner” ou o “Black Lodge” que passa a se chamar de “Dark Place”. O jogo apresenta um final aberto que, assim como o seriado, só seria solucionado anos depois.


E nesse contexto que trago também Alan Wake 2 (2023), a aguardada continuação que expandiu ainda mais limites, não só da franquia, mas dos jogos como um todo. O jogo traz a escapada de Alan do Dark Place 13 anos depois de desaparecer; concomitantemente aborda uma investigação do FBI de um culto que pode estar ligado ao seu sumiço. Se anteriormente apontei as semelhanças de Silent Hill com o longa-metragem de Twin Peaks, aqui preciso abordar como esse jogo se inspira na terceira temporada Twin Peaks: The Return (David Lynch, 2017). 


Alan, assim como o Agente Cooper (Kyle MacLachlan), busca uma forma de escapar de um plano além da nossa realidade e impedir os avanços de seu duplo, porém aqui ele possui mais recursos que o detetive amante de café. Alan pode escrever e, ao escrever, ele é capaz de mudar o curso dos acontecimentos e da realidade como um todo, gerando a mescla entre a gameplay, as cutscenes (partes fílmicas de um jogo) e cenas gravadas em live-action. A narrativa mescla essas três camadas a fim de confundir o jogador entre ficção e realidade e transmitir em conjunto como se sentem as personagens lá dentro.


Ambos os jogos buscam, em maior ou menor escala, emular os sentimentos de estranheza, inquietação e bizarrice que Twin Peaks é capaz de tão habilmente proporcionar. Enquanto Silent Hill 2 busca intensificar o macabro, apostando mais no que há de mais gráfico em termos de violência e apresenta uma narrativa altamente niilista, Alan Wake trás uma estrutura história mais psicológica e dramática, porém com mais elementos de ação na gameplay, focado na jornada de seus protagonistas (Alan e, posteriormente, a Agente Saga Anderson). Deixo aqui o convite para que você conheça e experimente esses jogos, caro leitor, se assim seu bolso permitir, mas acima de tudo, faço deste texto uma súplica para que você dê uma chance a Twin Peaks para que também se apaixone pela obra-prima de David Lynch.

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