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OV.NI.NA: Incidente do Sereiano Intergaláctico


Cena do filme "O Gato que Veio do Espaço" (Norman Tokar), de 1978.

DIÁRIO DE BORDO: RECORDAÇÃO DIÁRIA NO. 11


Antes de partir em viagem, tio Márcio bem que me avisou dos perigos do espaço. O Silêncio. Naves corsárias. Excesso de luz solar. Falta de luz solar. E diversas criaturas que enganam as especificações de formas vivas - que conseguem sobreviver sem oxigênio, sem luz, mas nunca sem comida.

Tio Márcio, porém, não avisou do tremendo tédio que era. Nada para fazer o dia inteiro além de checar o estado da nau, assistir filmes baixados ou em CDs, e às vezes cantar bem alto - mas logo isso se tornava estranho e assustador.

O dia foi entediante, catando pasta de dente extra-flutuante que acidentalmente deixei escapar, tentando pintar um quadro em força centrífuga, conversando com o computador, e cuidando das plantas na estufa.

Entediante, isto é, até o Computador me avisar: “Nina, temos um invasor na despensa. Recomenda-se a retirada imediata da entidade.”

“Hã? Na despensa?”, perguntei, confusa. Não era positiva a ideia de qualquer criatura entrando aqui. Peguei minha raquete de frescobol, a arma mais próxima que tinha de mim, e fui enfrentar o que estivesse na despensa. “OK, vamos resolver isso logo.”

A despensa era escura e um pouco fria, e demorou muito até eu perceber a criatura na parede – seis patas que pareciam se mexer sem coordenação, quatro olhos castanhos que continuamente rodavam para mirar tudo do aposento ao mesmo tempo. Era pequena, amarela, peluda e super nojenta. Dei um grito e me afastei, mas o Computador me apressou.

“É uma goznique, inofensiva, exceto pela pelugem que provoca sérias queimaduras na pele. Com uma simples pá e luvas você consegue tirá-la de dentro...”

Subitamente, a criatura pulou da parede na minha direção! E tudo o que pude fazer foi arremessar a raquete de madeira contra ela, num único movimento que a esmagou contra o chão. Tremendo, falei para o Computador:

“E-ela morreu?”

“Sim, Nina.”

Soltando um longo suspiro, espatifei no chão. Ainda tremia um pouco.

“Aahh, cansei... Me leva de volta pra Terra, Computador.”

“Certeza? Você ainda tem sua missão.”, falou com seriedade.

“Eu sei, eu sei... continua na rota.”

Iriam rir de mim se soubessem que não aguentei menos de duas semanas aqui, mas é mais difícil do que parece. Até a gravidade zero, que pode parecer divertida, tem seus problemas. Não tem como arrotar nela, e cedo ou tarde você precisa arrotar. Talvez eu me sentisse menos entediada se não estivesse viajando sozinha, mas não tive escolha - a única pessoa que eu gostaria que estivesse aqui não pôde vir.


* * *


Teria terminado a mensagem aqui, mas há coisas que preciso registrar. Estava cozinhando, porque estava cansada daquelas malditas comidas instantâneas dos astronautas, que são horríveis por sinal, mas isso não importa. De qualquer modo, comecei a ouvir uma voz, com um timbre leve e terno. Parecia a sensação de reconhecer a voz de alguém no meio de outros sons. Mas não falava nada com nada.

Corsário - armazém - sonhos

Onde estava aquela maldita voz? Comecei a procurar entre os objetos da sala, qualquer um que tivesse ligado acidentalmente. Talvez alguma gravação.

Largado no sofá estava um aparelho de som pequeno e redondo, então peguei e o aproximei do ouvido. Pouco depois, dele saíram quase as mesmas três palavras.

Corsário - armazém - sonhar

O que tudo aquilo significava? Pensei em descobrir depois das tarefas.

Desliguei o aparelho e voltei a cozinhar. Tinha feito hambúrgueres, mais do que devia, porque não sabia a quantidade de cada ingrediente para apenas uma carne. Comi um deles, deixei o outro para depois – apesar da insistência do Computador para que eu comesse algo mais saudável. Olhei mais uma vez o aparelho de som, que deixei na bancada da cozinha, e fui fazer as tarefas restantes.

Enquanto as fazia, tinha o costume de conversar com o Computador, minha única companhia na nave. Daquela vez, perguntei:

“Computador, o que é o amor?”

“O amor é um fenômeno emocional e psicológico complexo e multifacetado que afeta a experiência humana. É um aspecto fundamental e universal da existência humana, que pode ser difícil de definir precisamente devido à sua natureza subjetiva e às várias maneiras pela qual se manifesta”. A voz estática e gravada da I.A. começou estranhamente sedativa, acariciante, e senti um calor tomar conta de mim enquanto analisava os painéis. Mas a lembrança dela, e da saudade que sentia começou a tornar o calor numa massa pesada, como se puxasse o pouco de ânimo que havia conquistado. Acho que aquilo me frustrou.

“Tá bom, tá bom, já entendi!”, repliquei.

“Desculpa-me, não sabia que buscava uma resposta mais curta. Pode pedir por um resumo em sua própria pergunta, até especificar o limite de palavras a serem usadas.”

“Não, não é isso… acho que eu queria ouvir a resposta de uma outra pessoa.”

“Posso ajudar com isso. Aqui estão os contatos dos dez maiores nomes da psicologia e, também, de conselheiros em relacionamentos.”

“Não precisa! Valeu!” Parei e pensei em fazer uma brincadeira. “Ei, voz! O que é o amor?”

Silêncio, como esperado. Continuei a analisar os dados nas telas e anotar na caderneta. Então, senti um forte sopro de vento, com aquele sabor de sal que me lembrou dos meus dias em Noronha, com Clarisse.

Não posso dizer o que é, mas sei onde encontrar.

Me levantei num espanto. O coração batia mais alto do que qualquer som que eu pudesse ouvir novamente. Onde estava aquela voz? Já sabia que não era uma gravação corrompida, visto que me respondeu. Não, eu não estava sozinha na minha nave.

“Computador, ouviu isso?”

“Ouvi sim, Nina.”

Tremendo, ousei perguntar. “De onde veio...?”

“Não sei, Nina.”

“O que eu faço?! Tem algum outro bicho na nave?”

“Gostaria de chamar um dedetizador intergaláctico?”

“Sim! Chama logo!”



DIÁRIO DE BORDO: ???.???.???


Preciso parar de escrever neste caderno. Sempre que escrevo, parece que tem alguém, ou algo, escondido, rabiscando entre as linhas e manipulando o que irei fazer.

Faz apenas alguns dias que estou sozinha na nave, mas já estou ficando paranoica. Fui ao quarto de Clarisse por curiosidade e encontrei uma nota, um postite grudado na parede. Dizia: desperte seu olho. Mas não parecia a letra dela.

Tentaram abrir a porta do meu quarto. Eu vi a maçaneta girando, então senti uma forte tontura ao lembrar que a porta não tinha maçaneta, e que abria quando me aproximava. Não confiava mais em portas, então decidi dormir na área de lazer da nave, bem ampla e com uma grande janela para as estrelas e o nada. Por ser maior, havia mais sombras, mas pelo menos não uma falsa sensação de conforto.

Estava dormindo na mesma sala, e vi o contorno de uma garotinha humana, pela altura não tinha mais de dez anos, dançando e rodopiando no centro da sala, a poucos metros de onde eu estava dormindo no sofá. Não fazia nenhum som. Era mais uma ilusão da criatura que tinha invadido aqui? Fiquei encarando a garotinha, quase paralisada, tentando ver melhor no escuro, até ela desvanecer. Ainda tinha a imagem presa na mente quando cai no sono.


* * *


Fui acordada pelo som de uma batida na porta de entrada, que me acordou como um banho de água gelada. Brandi novamente a raquete de frescobol.

“Quem está aí?!”, gritei.

Uma voz um pouco rouca, mas firme, respondeu: “Chamaram um dedetizador? Pois bem, cheguei!”

“Computador! Me mostre a câmera do hall de entrada.”

A tela da sala desceu e mostrou a imagem do hall, onde um homem de meia-idade, com um longo pontudo bigode, esperava. Vestia o que parecia ser uma mistura do sobretudo de um marinheiro com um traje de dedetização.

“Ah, OK.”, suspirei de alívio. “Pode entrar, detetizador.”

A porta se abriu e o homem entrou a passos pesados. “É dedetizador, com um D, mas a senhorita pode me chamar de Sr. Waldemar.”

“Prazer, meu nome é Nina.”, pensou por um momento. “Certeza? Me ensinaram que era com T...”

Ele deu uma olhada pela sala, e comentou: “Eu vim justamente por saber falar a língua terráquea, mas você não é de lá, é? Com esse cabelo verde e pele cinzenta...”

“Sou venusiana, sim, mas moro na Terra. Pode parar de me encarar e resolver meu problema? Tem uma criatura rondando a nave, e ela está mexendo com a minha cabeça...”, ao falar aquilo, senti minha enxaqueca piorar.

O homem tirou dos bolsos fundos um papel impresso com diversas caixas de marcar.

“Vejamos... esteve em contato com alguma gosma ou algo que se assemelhasse a uma mistura de lesma com muriçoca?”

“O quê?! Não!”

“Ufa. Comeu alguma comida de astronauta sem verificar a validade? Ou a comida de Marte, de qualquer modo?”

“Não! Olha, estou ouvindo vozes, e elas ficam aparecendo em todos os lugares.”

“Hm... entendi.”, ele parou de ler e olhou bem nos meus olhos. “Uma nave vagando solitariamente os confins do escuro-vasto-espaço é um alvo para seres famintos.”

“Mas que criatura faria isso? Não é fome... é crueldade.”

Sr. Waldemar suspirou, fazendo seu bigode remexer. “Isso nós iremos descobrir, minha cara. Não se preocupe, porque não irei a lugar nenhum até resolver seu problema.”

Começou a andar de um lado ao outro pela nave, vasculhando cada centímetro dela. Carregava um curioso dispositivo na mão, que vez ou outra soltava um bipe agudo. Apontou para todas as direções e, decepcionado, guardou o dispositivo.

“O que é isso?”, perguntei, curiosa.

“Era um captador de ondas sonoras. Talvez sentisse a criatura andando, mas agora só irá funcionar se ela falar novamente, isto é, se não estiver na sua cabeça.”

“Não está na minha cabeça!”, reclamei. “O Computador também ouviu.”

“O Computador, é?”, Sr. Waldemar tocou na parede. “Então, a voz sem corpo desse computador você confia, mas essa que apareceu, não?”

“Mas é óbvio”, argumentei. “A do Computador eu sei de onde vem, do que é feito. Além disso, ela é superútil e nada enigmática, igual a que a gente está procurando.”

“Ela é superútil, você diz? OK, vejamos então.” O velho Waldemar chamou: “Ô, Computador, vem aqui!”

“Como posso ser de assistência, dedetizador?”

Sr. Waldemar se virou para mim. “Viu como é com D? Computador, poderia me mostrar uma gravação dessa voz enigmática?”

“Claro que posso, com autorização de Nina”, respondeu.

“Mostre”, falei, decidida a acabar com a história toda.

A gravação ressoou nos alto-falantes da nave. Um som de ambiente, vazio e estático, e então a minha voz.

Voz, o que é amor?

Silêncio. E então o som da nave tremendo... já era para a voz misteriosa ter respondido!

“Pera, quê?!”

“Isso não é bom, Nina.”, Sr. Waldemar comentou. Mas, vendo minha cara, ele se aproximou de mim e pôs a mão no meu ombro. “Não se preocupe, minha cara. Já rodei a Via Láctea milhares de vezes, e iremos tirar essa criatura seja da nave ou da sua cabeça.”

Tentei sossegar. Independentemente do que fosse, conseguiríamos dar um jeito.

Naquele momento, a voz se repetiu, numa risada. Não é assim que se entra no mar, Nina! Primeiro você precisa tirar seu tênis, besta!

Imediatamente me virei para Sr. Waldemar, para ver se ele escutou. As palavras já estavam evoluindo para frases, mas a voz se tornava mais clara e familiar.

“Ótimo, isso descarta a lesma neuroparasital...”, Sr. Waldemar mencionou, tranquilamente.

“Eu disse que não tinha entrado em contato com nenhuma lesma!”, retruquei.

“Nunca se sabe! Ela podia ter mexido com as suas memórias!”

“Então de que adianta perguntar?!!”

Continuamos as tentativas. Onde passávamos, Sr. Waldemar deixava algumas linhas de sal, pela chance minúscula de ser um espírito. Ele também me fez triturar alhos de Mercúrio, que potencialmente afastavam os vampiros espaciais. Mas nada daquilo surtiu efeito. Logo Sr. Waldemar parecia sem ideias, e decidiu sentar-se em uma das poltronas. Do seu segundo bolso fundo, tirou um livro e começou a folheá-lo.

“Seja lá com o que estamos lidando, é uma criatura rara, senhorita Nina.”

“Então... é uma voz que pode ser ouvida, identificada pelo Computador, mas, mesmo assim, não pode ser gravada”, comentei. “E ela repete a voz de pessoas que conhecemos.”

“Pessoas que conhecemos? Senhorita Nina, o que foi que ouviu?”

“Ouvi a voz de uma amiga... alguém que não vejo tem tempo.”

“E ela e você não partiram em bons termos, imagino?”

“É... pode-se dizer isso.”

Sr. Waldemar ponderou por um instante. “Nina, temo já saber qual criatura estamos caçando.”

“Ah, é?”, perguntei, temerosa. “E o que é?”

“Se trata de um sereiano intergaláctico. Criaturas passionais, elas, vagando pelo espaço à procura de naus solitárias onde possam rastrear sentimentos e memórias - que usam pelo som para atrair pessoas. Se for esta a situação, está à procura de algo muito específico para se alimentar.”

“Ela está... com fome?”

Me alimente...

“Sim! Agora, devemos encontrar a sua comida, e atraí-la para um local estratégico, onde poderemos retirá-la de dentro! O primeiro passo do guia do dedetizador espacial: descobrir qual a criatura que estávamos lidando, isso já havíamos feito. Segundo passo: descobrir o que queria, isso também havíamos feito, mais ou menos. Terceiro passo: encontrá-la e dar um jeito de se livrar de sua presença!”

Um corsário deve alimentar a dama, venha, irei trazer amor contra todo sofrimento.

A voz ficou mais intensa, e logo estava ouvindo-a em todo lugar. Alimentar, alimentar, alimentar – como uma voz sugestiva clamando para que me arremessasse ao mar.

Corri para a cozinha, peguei o hambúrguer que havia guardado para mais tarde e arremessei pelo ejetor mais próximo (olha, eu estava desesperada).

“Vai, pega! Me deixa em paz!”, gritei.

Enquanto olhava o hambúrguer desmontar no espaço, o queijo e molho flutuarem para longe, Sr. Waldemar me alcançou.

“Acho que não era isso o que a criatura queria”, ele comentou.

“Mas, o que ela come? Por que mexer com a minha cabeça?”

“Os sereianos se alimentam de angústia, medo e raiva. De sentimentos negativos. Deve ter algum foco na sua nau que esteja a atraindo.”

Isso me fez pensar no quarto de Clarisse, nos poucos dias que ela passou aqui; pensei na sua tremedeira, no suor, nas brigas. Apertei meu punho para me controlar - não podia perder a cabeça na hora. Comecei a pensar nas primeiras palavras da voz.

Armazém.

Poderia haver algo no armazém que atraísse o sereiano?

“Acho que sei o que é!”, chamei Sr. Waldemar. “Venha, me siga!”

Comecei a correr até o armazém - não podia deixar que a criatura chegasse antes. Atravessamos a ala destra do convés, e pelo canto do olho vi um movimento na janela, o que só poderia descrever como um fuzuê de braços e tentáculos.

“Ele está ali fora!”, apontei. “Está nos seguindo para dentro da nave!”

“Sabia! Um sereiano não precisa entrar para cantar... ele transmite sua voz via vibrações na superfície da nave!”, ele exclamou. “Vamos! Se conseguirmos identificar o que ele busca, podemos nos livrar dele!”

“Não posso!”, retruquei. “Se for o que estou suspeitando, é muito arriscado.”

“Por quê?”

Não respondi de imediato, pois tínhamos alcançado o armazém. Abrindo a porta, a nave tremeu novamente.

Ouvi a voz do pai de Clarisse falando sobre música. Não, em outro universo os Mutantes teriam a mesma notoriedade dos Beatles... eles são de outro mundo!

E então: Armazém... me alimente...

“Isso não é comida!!”, respondi, decisiva.

“Senhorita Nina, o que a criatura está atrás, afinal?”

Entramos no armazém, e bem no centro, depois de prateleiras de mantimentos, estava a caixa, nem tão grande ou pequena, ornamentada com entalhes de um outro mundo.

“É o que estou transportando, Sr. Waldemar.”, respondi.

“O que está na caixa, se não se importa com a minha pergunta?”

Olhei para a caixa, frágil e simples, mesmo com a arte na madeira.

“É a chave para o futuro do meu planeta.”

“E pode ser um foco de medo ou angústia?”, Sr. Waldemar parecia cuidadoso com suas próprias palavras.

“Bem, levou muita dor pra conseguir”, respondi. “Então não posso usar pra atrair o sereiano... não posso arriscar, me desculpa.”

“Tudo bem, minha cara. Vamos encontrar outr-”, ele parou e fez uma cara feia, arrepiando seu bigode. “Desculpe, mas o que é esse cheiro?”

Um odor forte começou a tomar conta do armazém - vinha da despensa, que ficava numa sala menor dentro de onde estavam.

“Vixe... é que eu matei uma... qual o nome mesmo, Computador?”

“Goznique”, a voz sistemática soou através da parede.

“Eureca!”, Sr. Waldemar exclamou. “O sereiano pode estar atrás desse insectóide!”

“Como assim?”

“Você matou a coitada! Imagine o medo que ela deve ter sentido antes de morrer! Isso pode atrair a criatura muito mais do que sua caixa, já que foi mais recente!”

Ouviu-se uma tremedeira ao longo da nave, como se estivesse chocado contra algo.

“O que foi isso?!”, gritei, quase tropeçando.

“O sereiano deve estar impaciente! Não fizemos sua vontade, e seu próximo passo será forçar um jeito para dentro!”

“Mas isso vai destruir a nave! Precisamos tirar ele logo!”

“Eu sei! Vamos pegar o bicho e atrair o sereiano para o hall de entrada, onde abriremos a escotilha e soltaremos a carcaça para fora!”, Sr. Waldemar se dirigiu à despensa, abriu a porta e congelou.

“Sr. Waldemar, está tudo bem?”, perguntei, me segurando entre os tremores da nave. O rosto dele estava mais pálido do que o bigode.

“U-u-uma aranha...”, e ele desabou no chão.

Na parede à minha frente, estava o que só pode ser descrito como um gato de oito patas... e oito olhos. Ele miou e pulou para cima do goznique caído.

“Pspspspsps”, tentei chamar o bichano-alienígena. Nada. “Eu preciso desta carne, então... seja um bom gatinho, viu?” Quantos bichos tem nessa nave?

Mas o bichano não se movia, e estava se aproximando da carcaça.

“Sugestão: atraia a atenção dela com um novelo de lã”, disse o Computador.

Mais uma tremedeira. O gato empertigou-se com as oito patas, quase não se moveu. Mas eu estava tendo dificuldade já de ficar em pé, e a qualquer momento a nave iria falhar e tudo iria implodir no espaço.

“Não tem novelo de lã aqui!!!”, mas lembrei de um vídeo que a mãe de Clarisse me mandou uma vez. Os gatos se assustavam com algo que lembrava eles de algum animal perigoso... qual? Por sorte, na minha direita, estava um amontoado de verduras, e reconheci naquele monte uma verde e longa, que parecia muito com uma... serpente!

Joguei o pepino entre o gato-alien e o goznique. Como esperado, o bicho deu um pulo enorme com suas oito patas de volta para a parede. Sentindo um nojo enorme, pus as luvas do Sr. Waldemar e peguei a criatura morta, que soltava uma gosma grudada ao chão, como separar queijo derretido de uma pizza.

Corri desesperadamente – estava tudo por um fio. Perigo de falha catastrófica. Acionar escudos. A mesma voz do Computador soou pelo Hall. Mas eu estava tão perto! Não daria para voltar para a sala de comandos e acionar tudo manualmente. Era hora de encarar a criatura de uma vez.

As tremedeiras haviam parado, então sabia que o sereiano estava me seguindo. Chegando à escotilha, bati o recorde de quão rápido alguém poderia colocar o uniforme espacial. Fechando o capacete, entrei na escotilha e me prendi à nave. Quando abrisse, tudo dentro seria sugado para fora.

O som de um arranhão anunciou a chegada do sereiano e, pela porta transparente, pude vê-la bem pela primeira vez. Parecia um morcego; não, um polvo; não, um orangotango... possuía jubas e dois olhos proeminentes e amarelos, com pupilas traçadas que nem a de um polvo. Quatro asas saíam do que deveria ser suas costas e peito, e atrás tinha barbatanas arredondadas que se fechavam como uma flor, ajudando-a a se movimentar. Duas fissuras atrás liberavam gás para que avançasse. E além das barbatanas, uma horda de braços (ou tentáculos?) agarravam-se furiosamente à abertura da nave. Com o goznique na mão e a outra livre, apertei para abrir a escotilha e me agarrei com força às barras de metal que prendiam à parede.

A escotilha abriu e todo ar foi sugado para fora com uma força tremenda que até senti meus pés quase saírem do meu corpo. E, então, os milhares de tentáculos do sereiano invadiram o espaço, procurando sua comida. Foi então que soltei o pobre e nojento goznique para fora, tentando fazer com que passasse através dos tentáculos para dentro do nada.

A carcaça foi puxada rapidamente, pelo canto, atravessou os olhos furiosos do sereiano e foi lançada no espaço sideral. O sereiano se desvencilhou e pulou com seus mil braços para alcançar aquele pedacinho de gosma e carne, sendo a última vez que vi os dois bichos (graças a todos os deuses).

Após fechar a escotilha e guardar o traje, retornei para a despensa, onde estava o grande guerreiro, Sr. Waldemar. Joguei água nele, cortesia pelo jeito abrupto que me acordou mais cedo.

“Que tipo de detetizador tem medo de aranha?”, reclamei, mas brincando.

Ele esfregou o rosto e se levantou de fininho. “Primeiro, é dedetizador, lembre-se. E segundo, eu nunca sonhei que encontraria uma dessas peçonhas no espaço...”

“Justo.” Por sorte, o gato-alien não estava presente no recinto, nem quando fui me despedir do dedetizador (não acredito que Clarisse me ensinou errado!), após pagar o que devia a ele. Pelo orgulho, ele quase recusou, mas insisti.

Enfim, ainda tinha uma pergunta me incomodando.

“O sereiano disse que podia me mostrar onde havia amor, mas ele estava se referindo a um bicho alienígena morto. O que ele quis dizer? Era só mais um truque cruel?”

“Os sereianos se alimentam de pavor e medo, mas não são criaturas malignas por natureza. Seres intergalácticos se comunicam de outras formas de consciência e têm muita dificuldade de traduzir suas linguagens. O que esse sereiano queria fazer era retirar toda essa infestação de medo e mágoa. Foi o que a voz te disse, por se alimentarem desses sentimentos, eles buscam trazer amor.”

“Mas então por que as vozes me lembram tanto de coisas que eu preferiria esquecer?”

Sr. Waldemar suspirou, e por um momento parecia mais velho do que realmente era. Me lembrei que ele tinha escutado uma voz diferente da que eu escutei, mais cedo. Me perguntei o que poderia ter sido. “Porque, minha cara, não tem como esquecer seus problemas. Só podemos enfrentá-los. É uma missão e uma maldição humana.”

“Como sabe tanto sobre saúde mental?”, retruquei.

“Minha cara, são coisas que deve-se saber quando se é um dedetizador intergaláctico.”

E com isso, nos despedimos. Eu disse que iria cuidar do gato-aranha, apesar dele parecer chocado, mas não insistiu em ter de lidar com o bichano.

De resto, foi o mesmo tédio. Limpei todo o sal no chão, que já estava bagunçado de qualquer jeito; tomei banho para evitar coceira do goznique, e acho que merecia um daqueles poucos banhos de espuma.

“Computador, quanto tempo as bolhas sobrevivem?”

“Desculpa-me, mas não entendi. Bolhas não são formas de vida, mas estruturas frágeis de água com sabão ao redor de ar.”

“Esquece”, falei. “Computador, acha que somos parecidos?”

“Por que pergunta isso?”

Algumas lembranças que o sereiano invocou ainda pairavam na minha mente. “Às vezes sinto que sou um pouco sem coração, que nem uma máquina. Sem ofensas.”

“Um segredinho: eu tecnicamente não consigo me ofender.”, fiquei chocada – o Computador tinha feito uma piada? “Nina, eu não concordo com você. De fato, acho o contrário. Você é uma pessoa mais guiada pela emoção do que realmente percebe.”

“Hã?”

“Veja bem, você poderia ter acionado os escudos, que desintegrariam a criatura, mas não o fez” Na verdade, me esqueci disso. “Ao longo da caça ao sereiano, você continuou preocupada com as condições que ela se encontrava. Estava te atormentando há um dia, mas você ainda queria saber se estava faminta, e se podia fazer algo. E por fim, foi você quem a mandou embora, ainda assim pagou o dedetizador por ter vindo todo esse caminho - sendo que poderia ter ficado com o dinheiro.”

“Obrigada, Computador. Seria muito melhor se eu não soubesse que todas essas respostas foram programadas em você.”

“É verdade, mas não se esqueça de que alguém me programou.”

“O quê? Algum programador alienígena com horários abusivos?”

“Não, foi esta pessoa aqui.”

Através dos feixes de luz, um holograma surgiu. Era a face de uma mulher idosa, mas parecia sorrir com energia para a câmera quando a foto foi tirada.

“Essa, Nina, é a sua avó. Ela me programou.”

Ficamos em silêncio por um momento. O gato-alienígena invadiu o banheiro e ficou esperando, deitado. Então, me lembrei da nota no quarto, da maçaneta, e da garotinha.

“Última pergunta, Computador.”, senti um calafrio ao falar. “Se o sereiano só produzia ilusões sonoras, quem era a garotinha que vi dançando?”

“Sinto muito, Nina, mas não consigo responder isso. Não tenho recordação de uma criança na nave. Gostaria de contatar o dedetizador novamente?”

“Hm… deixe pra lá”, suspirei. “Já não me sinto sozinha.”




Conteúdo presente na edição de SETEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.



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1 Comment


Mari Soares
Oct 04, 2023

Ameiii 💖

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