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Para além do Zé do Caixão: o terror nacional por Walter Hugo Khouri





É muito comum quando se inicia uma trajetória pelo cinema brasileiro de associar o gênero do terror quase exclusivamente a figura do Zé do Caixão. 


De fato, a persona do coveiro morbidamente apaixonado de José Mojica Marins (1936 - 2020) tornou-se um símbolo da cultura popular brasileira com suas unhas longas, vestes características, falas profanas e uma coleção de filmes hoje considerados clássicos, tais quais À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964), O Despertar da Besta (1970) e Finis hominis (1971). Mas é claro que não era apenas o "Zé" que levava o horror às grandes telas do Brasil, e é para isso que eu estou aqui, caro leitor, para te apresentar (caso não conheça) outro cineasta que vislumbrou o terror por lentes distintas: Walter Hugo Khouri  (1929 -2003).


Khouri fora acima de tudo um pensador da imagem, ele estudou filosofia na USP e buscou enquanto cineasta uma forma de filmar a psiquê humana, muito influenciado por cineastas europeus como Ingmar Bergman (1918 - 2007), diretor de Persona (1966) e O Sétimo Selo (1957). Outro tema que lhe foi caro é o erotismo, a dualidade entre o sexo e o prazer e a representação imagética do desejo, demonstrado em filmes como Noite Vazia (1964) e As Filhas do Fogo (1978).


O diretor passeou de fato por diversos gêneros, e é argumentável que o horror sequer seja o mais volumoso de sua carreira, contudo acredito que essas obras mereçam uma revisita através de uma análise de O Anjo da Noite (1974), seu primeiro longa feito pelos códigos do terror.


Ana, uma estudante de psicologia, é contratada para cuidar de duas crianças em uma erma casa de campo. Durante a noite, ela começa a receber estranhas ligações que ameaçam sua vida, ficando dependente da proteção de Augusto, o vigia da propriedade.

Um paralelo imediato da sinopse pode ser tratado com A Volta do Parafuso (1974), de Dan Curtis ou mesmo Noite de Terror (1974) de Bob Clark, ambos filmes lançados no mesmo ano que abordam elementos como o isolamento ou os telefonemas enquanto catalisadores para um assombro maior, porém seu maior semelhante talvez seja O Iluminado (1980) de Stanley Kubrick, que apenas 6 anos depois do lançamento deste viria a ser terror tal qual este.


Tem-se um longo prólogo que mostra Ana viajando até a casa, um abandono voluntário da sua tranquilidade. No ônibus, ela lê sobre hipnose. Ao chegar em casa, a estranheza do ambiente e do comportamento, por mais que sejam cordiais e até íntimos, há sempre um vale de estranheza entre Ana e todos, exceto por Augusto. Em dado momento, este comenta com a protagonista que sente uma energia maligna na casa, uma forma de opressão das intimidades que percebemos ao longo das cenas.


 Khouri esculpe o tempo com tranquilidade, usa da repetição de planos, closes, detalhes da casa, de estátuas, pinturas, excertos de uma natureza morta e sons ritmados como badalos de um relógio (com pouquíssima música) tudo para nos confundir — ou talvez avisar — sobre o que está por vir. 


O diretor condiciona o público, tão aficionado naquele momento pela obra de Mojica, a aguardar sempre pelo gráfico, horrível e profano, mas este não chega. Em vez disso, nossa curiosidade é cozida junto às crenças da protagonista num fervor provocativo, como no momento em que o filho mais velho convida Ana para uma sala escura e lhe confessa gostar de sentar ali e aguardar o medo chegar, assim como faz o espectador.

 

O silêncio é sempre rompido com inquietude, são as crianças que não conseguem dormir e os telefonemas que impedem Ana de também dormir, relegando-a ao descompasso do medo, tal qual a cena cujo vigia brinca de tiro com Marcelo utilizando sua arma real. Há simultaneamente uma sensação de concretude de um perigo iminente, no mesmo passo que nada daquilo perde sua essência meramente teatral, embora terrífico. 


Khouri subverte a ideia de "show, don't tell" (mostre, não conte) ao sempre sugerir o mal, mas nunca concretizá-lo em tela. Da mesma forma que opera uma sugestão hipnótica, somos levados a crer no que não podemos ver até ser tarde demais para nos prepararmos.


No frigir dos ovos, é possível que muitos sintam-se incomodados com a falta de uma frontalidade do terror com o público. Outros ficaram pensando como foi possível para Walter Hugo Khouri realizar um "pós-terror" há 50 anos atrás. A verdade é que a construção e desconstrução de um gênero é cíclica, guiada pelas tendências do momento. Enquanto Mojica olha para o sobrenatural com um ar mais gótico e expressionista, pautado em influências como Nosferatu (1922) de F. W. Murnau, Khouri busca muito de sua mise-en-scène no modernismo, inspirado aqui principalmente por A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman.


Não busco em O Anjo da Noite um caráter de "melhor ou pior" para com o Zé do Caixão, apenas peço que deste texto fulgure uma centelha de curiosidade em você, leitor, para buscar do nosso tão vasto cinema nacional, especialmente o assustador. 


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2 commentaires


Invité
19 août

Realmente, o gênero de terror no cinema nacional não pode ser reduzido a uma única figura por maior que seja sua representatividade. Não conhecia Khouri e os seus filmes mas vou procurar para conhecer melhor.

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Que texto incrível, fiquei muito curiosa pra ver!!

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