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Para falar de Mitologia, precisamos falar de Religião.

ARTIGO DE OPNIÃO por Júlia de Alencar








Ao nos imergimos na vasta tapeçaria da mitologia, desvendamos narrativas que transcendem limites temporais e geográficos, revelando os mais profundos anseios, medos e maravilhas que permeiam a experiência humana.


A mitologia grega, nesse sentido, nos cativa com suas divindades e seres divinos que personificam características humanas e cósmicas. Zeus, por exemplo, vai além de ser apenas o senhor dos céus; ele é uma manifestação das forças imprevisíveis da natureza. Ao mesmo tempo, ele é também uma figura acolhedora e paterna para a humanidade, sendo um dos únicos Deuses a apoiar Tróia durante a Ilíada, epopeia precedente à Odisséia. Por sua vez, Odisséia de Homero não é apenas uma epopeia, mas um espelho das odisseias que todos enfrentamos em nossas vidas. Os Deuses são exemplos da dualidade humana, sendo misericordiosos, generosos e gentis durante algumas histórias, e sendo capazes de punições dramáticas e terríveis em outras. Dessa forma, é possível perceber neste panteão um reflexo do divino e do humano entrelaçados, uma dança cósmica de interações e relações complexas.



Assim ele lá dormia, o muita-tenência, divino Odisseu,

dominado por sono e fadiga. E Atena

foi até a terra, a cidade dos varões feácios.


Eles antes moravam na espaçosa Hipereia,

próximo aos ciclopes, varões arrogantes,

que os lesavam, pois na força eram superiores.


De lá fê-los erguer-se o deiforme Nauveloz,

e assentou-os em Esquéria, longe de varão come-grão;

em volta puxou muro para a cidade, construiu casas,

fez templos de deuses e dividiu as glebas.


Mas ele, já subjugado pela morte, partira ao Hades,

e Alcínoo regia, versado em projetos vindos de deuses.

À sua casa foi a deusa, Atena olhos-de-coruja,

o retorno do enérgico Odisseu armando.


TRECHO DA "ODISSÉIA", DE HOMERO


A mitologia nórdica, por sua vez, nos transporta para um mundo que retrata o heroísmo e a inevitabilidade do destino tramado pelas Norns. Cada deus, cada criatura mítica, desempenha um papel vital no tabuleiro cósmico, lembrando-nos de que nossas próprias vidas estão intricadamente tecidas nos fios do destino. Aqui, não estamos apenas diante de mitos; estamos diante de uma cosmovisão que abraça a dualidade inerente à existência humana.


No mesmo sentido, explorar a mitologia egípcia é embarcar em uma jornada às margens do Nilo, onde deuses como Ísis e Osíris personificam a ciclicidade da vida e da morte. O Nilo, fonte de vida e renovação, transcende sua existência física para se tornar uma força divina que molda a compreensão egípcia da existência. Cada mito, cada ritual, é um testemunho da profunda conexão entre a divindade e a natureza, uma riqueza simbólica que atravessa os milênios.



Ao cruzarmos o Atlântico, deparamo-nos com os deuses indígenas das Américas, entidades que personificam montanhas, rios e animais. Suas mitologias, transmitidas oralmente de geração em geração, são como rios que fluem através do tempo, conectando passado, presente e futuro. Cada mito é uma celebração da interdependência entre os seres humanos e a natureza, uma expressão vívida da harmonia com o entorno. Essas mitologias fazem parte da história do Brasil, pois contam a origem do povo brasileiro como um todo.


Ainda assim, a chegada da colonização e escravidão lançou sombras sobre essas mitologias. A imposição do cristianismo pelos colonos portugueses resultou na demonização das crenças indígenas e africanas. Sob o peso da opressão, emergiram formas de resistência, como o sincretismo religioso, que permitiu a preservação criativa dessas tradições em meio às adversidades históricas. Portanto, o colonialismo agiu, e ainda age, como uma ferramenta fulcral para o apagamento de elementos culturais importantíssimos em várias culturas ao redor do mundo; mas não foi totalmente eficiente.


Assim como a conquista de Roma sobre a Grécia não foi apenas uma mudança política, mas uma transformação na mitologia e espiritualidade. A Grécia Antiga, berço de filosofias e mitologias, viu-se subjugada, mas, longe de ser aniquilada, sua cultura foi assimilada pelos romanos. Os deuses gregos foram absorvidos, assumindo novos nomes e atributos, mas mantendo a essência que os tornava divindades irresistíveis. Essa fusão cultural gerou uma sinergia única, onde as divindades gregas continuaram a influenciar a arte, filosofia e espiritualidade romanas.


As interconexões entre o Egito Antigo e a Grécia Antiga revelam narrativas compartilhadas sobre deuses e heróis, ecoando a busca universal por significado na vida, morte e renascimento. Os mitos de Ísis e Osíris encontram ressonância nas histórias de Deméter e Perséfone, destacando uma compreensão comum da condição humana e da eternidade dos ciclos da vida. As assimilações entre essas culturas também serviram para evitar o desaparecimento completo dessas tradições, visto que muito da tradição grega era transmitida oralmente.



A mitologia nórdica também foi importantíssima para que essa supressão não fosse definitiva, devido a sua notável adaptabilidade, resultado dos encontros dos nórdicos com diversos povos em suas explorações. Esta mitologia dinâmica incorporou novos deuses e tradições, ilustrando a capacidade de assimilar influências externas. A teia espiritual nórdica é, assim, uma construção em constante mutação, reflexo da interação criativa e evolutiva entre diferentes culturas.


No cenário contemporâneo, a religião Wicca destaca-se como um exemplo de síntese mitológica. Inspirada pelas mitologias celta e grega, a Wicca incorpora elementos dessas tradições em seus rituais e crenças. Essa interconexão entre mitologias antigas e a prática wiccana é um testemunho da busca humana por um equilíbrio entre tradição e inovação espiritual.


"A Wicca é mais que uma religião, é uma força que nos vem de dentro e nos impele a não desistir dos nossos ideais, sem medos, sem receios nem preconceitos!", afirma Bruno Baía

No âmbito do Reconstrucionismo Helênico, os praticantes buscam resgatar e reviver as práticas religiosas da Grécia Antiga adaptando-as à modernidade. Da mesma forma, o Kemetismo é uma tentativa de reconstruir e reviver as tradições religiosas do Antigo Egito. Ambos os movimentos refletem um desejo humano fundamental de conectar-se com as raízes culturais e espirituais, reconstruindo um elo perdido entre o passado e o presente.


No Brasil, a história da colonização inclui a presença da Companhia de Jesus, uma ordem jesuíta envolvida na catequização. Este capítulo sombrio contribuiu para a intolerância religiosa, prejudicando as crenças indígenas, africanas e outras formas de espiritualidade não alinhadas com a ortodoxia católica. É crucial problematizar essa intolerância e trabalhar para uma compreensão mais ampla e respeitosa das diversas crenças, e tratar dos seus mitos como uma cosmologia.


Combater a intolerância religiosa exige desafiar estereótipos prejudiciais e promover a educação intercultural. Valorizar e respeitar diversas tradições religiosas é crucial para construir uma nação mais justa e inclusiva. A mitologia e a religião, independentemente de sua origem, são expressões profundas da busca humana por significado. Ao reconhecer a complexidade dessas narrativas e práticas, podemos construir uma base para um diálogo intercultural e inter-religioso mais inclusivo, promovendo a tolerância e o respeito que são essenciais para uma coexistência pacífica.



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