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Penas queimadas em "O Menino e a Garça"

Matheus Maciel, autor e colunista na Revista Especular











A primeira coisa de O Menino e a Garça (2023) é um incêndio.


O fogo é um tema semiótico dos mais ricos e diversos entre culturas pelo mundo todo. Para os gregos antigos, é o estigma de Prometeu, representa a criação e o destino das coisas entregue às mãos humanas. Na cultura nipônica, temos ka (火), que representa e circunscreve o fogo, símbolo da transformação das coisas pela energia, pelo movimento. A vida de Mahito, o protagonista do - até então - último longa do aclamado Hayao Miyazaki, é drasticamente transformada pelo fogo. 


O contexto é do melancólico Japão em meio à Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), um tema bastante caro ao diretor, já que nasceu em meio ao conflito e sua infância foi infiltrada pelas ruínas da guerra que compuseram a paisagem social, econômica e política japonesa. Mahito passa, creio eu, pela exata mesma coisa, já que seu pai é um dono de fábrica de cabines de avião utilizados durante a guerra. Após um incêndio no hospital em que a mãe de Mahito trabalhava, que culminou em sua morte, seu pai casa-se de novo e a família se muda para uma confortável casa do interior. Vale dizer aqui que a madrasta de Mahito é idêntica à sua mãe. 


O rapaz não é uma criança desagradável. Embora esteja enfrentando a dificuldade de mudanças tão bruscas na vida, e o que parece ser uma estranha substituição de sua mãe, Mahito ainda mantém uma postura educada e bastante cordial perante os adultos, que parecem umas criaturas estranhas e caprichosas. Quando é atacado e se machuca na escola, acham que ele estava caçando briga. Claro, ele enfrentava um luto severo, mas à sua própria forma. Forma essa equivocadamente domesticada pelos adultos.


Não vou contar aqui a história completa do filme, vá assistir por ti mesmo. O que vale eu te contar é que uma garça dá um rasante em certa cena. O movimento de “câmera” acompanha o voo pragmático do bicho, que passa a vigiar os passos de Mahito. Depois de devidamente apresentados Mahito e a Garça, o bicho de mote mitológico o conduz para o mundo onde, de fato, vive. O Virgílio do protagonista também é seu mentor e alívio cômico, o que nos faz simpatizar bastante com a figura ao longo do filme.


Como já é costume do nipônico Estúdio Ghibli, um jovem protagonista descobre, se envolve e presta ajuda ao mundo mítico que a tudo cerca, invisível aos humanos ordinários. Poderia estar aqui falando de outros filmes do estúdio, como Viagem de Chihiro (2001) ou Princesa Mononoke (1997), mas O Menino e a Garça contém elementos que o tornam único. Claro, os demais também têm suas individualidades, mas neste, há uma atmosfera de despedida. Ela é encarnada na figura do velho mago da torre. 


Se, por um lado, nas narrativas de fantasia, tenhamos nos exemplos mais clássicos de herói uma figura que equilibra sua humanidade com seu lado místico (pense no Hércules da Disney), aqui no filme, a figura é sim de um caráter heróico, mas diferente. Um herói clássico busca vencer a si mesmo e as barreiras naturais (mesmo que de natureza mágica) para um objetivo austero e nobilíssimo que beneficiará toda uma comunidade, quem sabe um reino inteiro ou mesmo todo o mundo. Não à toa, estes heróis sagram-se reis e rainhas ao fim de suas histórias, certo, Aragorn? 


Mahito, por sua vez, precisa resolver algo sobre si junto. Ele é uma espécie nebulosa de “escolhido” aos olhos do mago da torre, mas hesita diante da missão. Não conseguiu ainda nem superar o sumiço de sua mãe, seguindo por aí rastros de penas de garça sem nos contar ao certo o porquê. Talvez entendamos que a recusa definitiva de Mahito é aceitar o fim das coisas. O fim da criação pelas mãos do velho da torre e o fim de sua mãe, ainda que suas memórias não o abandonem. 


O fim dos filmes de Hayao Miyazaki.


Entretanto, em um final catártico e calmo, talvez o filme estenda a mão para nós e nos pergunte se não queremos fazer alguma coisa ao fim desta. Eu mesmo quis escrever essa coluna e manter fresca a mensagem do filme para você, querido leitor.


Mantenhamos acesa a chama, ainda que um incêndio esteja sempre à espreita.



26 visualizações2 comentários

2件のコメント


Incrível.


Adorei ler e, agora, sinto-me na obrigação de assisti-lo.


Para além da qualidade poética de sua escrita, a lógica que se perpetua na narrativa também me é particularmente cara, pois para além do sentido figurado, também perdi minha mãe cedo, tendo que aprender a viver a partir das cinzas desses incêndio.

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Lindo texto! O filme realmente nos questiona sobre o que faremos, inclusive o nome original do filme em japonês é "como você vive" que é o nome do livro que a mãe do Mahito deixou para ele, quase uma meta linguagem, como se o Miyazaki, criador do filme, fosse a mãe, o filme sendo o livro e nós telespectadores o Mahito. Devemos manter a chama acesa e descobrir como viver mantendo ela viva

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