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Pensamento e Poder: Mitologia como Colonização Intelectual

por Júlia de Alencar







Quando falamos na queda do Império Romano, normalmente tendemos sempre a apontar as diferentes causas que levaram para esse grande acontecimento histórico, importantíssimo e que inegavelmente moldou a sociedade ocidental como a conhecemos. Afinal, saímos de uma multidisciplinaridade linguística, cultural e religiosa, caracterizada pelo politeísmo, para um fervoroso sincretismo e uma constante miscigenação, característicos da sociedade romana. Principalmente esse período com língua, religião e sistema governamental únicos adotados pelo Estado e institucionalizados pela Igreja Católica durante os próximos mil anos.


Nessa exploração, trarei à tona a interseção dinâmica entre mitologia e poder, destacando eventos significativos como a ascensão do cristianismo, a colonização intelectual e a influência romana na construção mitológica cristã.


A mitologia romana, conhecida por sua propensão ao sincretismo, incorporou elementos de diversas culturas conquistadas, adaptando divindades locais e mitos para fortalecer o seu controle imperial. Os romanos, ao governar sobre vastos territórios, viam suas divindades com nomes diferentes em diversas regiões, adaptando-se aos cultos locais. Esta abordagem tolerante e inclusiva gerou oportunidade de desenvolvimento para a mitologia cristã, onde alguns mitos nacionais com similaridades foram reinterpretados à luz do nascente cristianismo.


A incorporação de elementos mitológicos romanos na narrativa cristã, como a figura do deus Sol Invictus associada a Cristo, destaca a continuidade simbólica e a capacidade de adaptação da mitologia ao longo das transformações culturais e religiosas. Esse período transicional, marcado por efervescentes mudanças sociais, mas também no epicentro de poder, revela como a mitologia se torna não apenas um reflexo, mas uma força modeladora da identidade coletiva e legitimadora do domínio dos colonizadores sobre os colonizados.


A arte paleocristã, ou cristã primitiva, é uma excelente maneira de exemplificar isso, pois reflete a transição cultural e religiosa vigente no período conhecido como Império Romano para o período de ascensão do cristianismo. Caracterizada pela adaptação de elementos romanos, helenísticos e orientais, a arte paleocristã destaca-se em pinturas em catacumbas, sarcófagos e nas primeiras igrejas. Não me aprofundarei muito nesse assunto, pois foi melhor abordado no post dessa quarta-feira (17) na coluna “Arte/Literatura”.



O declínio do politeísmo romano, associado à ascensão do cristianismo, revela-se como um fenômeno complexo no contexto do Império Romano e seus sucessores. Durante a "reviravolta de Constantino", as correntes religiosas gregas e romanas abrangiam desde as tradições antigas de Grécia e Roma até o culto imperial característico da era romana, e as diversas religiões de mistério, como os mistérios eleusinos, o culto de Cibele, o mitraísmo e o culto sincrético a Ísis do Egito Antigo.


Ao longo dos séculos I a IV, o cristianismo primitivo gradualmente se fortaleceu em Roma e no Império Romano, culminando sua legalização e consagração como religião estatal através do Édito de Tessalônica em 380 d.C. Embora as tradições politeístas tenham persistido em algumas regiões gregas até o século IX, o fechamento da "Academia" neoplatônica em 529 d.C., por ordem de Justiniano I, marca simbolicamente o fim da Antiguidade Clássica.


Há, ainda, um exemplo mais claro que delata as mitologias como mecanismo de poder: Atenas, como epicentro político na Grécia Antiga, não apenas influenciava cidades-estados vizinhas, mas também moldava a coesão cultural em toda a Hélade (Grécia Antiga) por meio de suas mitologias e deuses. A transformação de Atena, deusa patrona da cidade, em Minerva é um exemplo notável, evidenciando a manipulação simbólica para suavizar resistências culturais e redefinir papéis de gênero, consolidando a hegemonia romana.


Esse contexto proporciona uma evidência clara dessa relação de poder dos mitos ao examinar a relação entre Belona, Minerva e Atena. Belona, embora não podendo ser considerada a contraparte romana de Atena, destaca-se por semelhanças marcantes, personificando a força e destreza na guerra adoradas por ambas as culturas. Nesse sentido, a ausência de uma contraparte direta de Belona na mitologia grega sugere a estratégia romana de preservar a familiaridade mitológica enquanto incorpora características específicas para atender às suas necessidades culturais e políticas, sem qualquer alusão direta ao povo dominado.



A manipulação simbólica é ainda mais evidente ao analisar a relação entre Minerva, contraparte romana de Atena, e a sua própria natureza grega. Ambas compartilham a esfera da sabedoria, mas a adaptação romana introduz distinções significativas: enquanto Belona, vinculada à guerra, personifica a virilidade e resiliência romanas, Minerva, mais domesticada, reflete normas de gênero romanas e ênfase na harmonia social, refletindo não apenas diferenças culturais, mas também aspectos da sociedade romana que valorizava características femininas tradicionalmente associadas ao lar e à maternidade.


A colonização desempenha papel central nessa transformação mitológica, integrando elementos culturais conquistados na narrativa romana. A colonização intelectual não apenas preservou a base mitológica, mas permitiu a incorporação de novos significados para atender aos valores emergentes da sociedade romana.


"E assim, a Barnabé deram o nome de Júpiter, e a Paulo chamou Mercúrio , pois era ele quem falava com poder". Atos 14:12-22

Valores socioculturais moldaram essas deidades. A colonização, portanto, é evidenciada na absorção de divindades estrangeiras e na adaptação de suas personalidades aos valores da cultura dominante.


A relação entre Belona, Minerva e Atena revela nuances da colonização mitológica e os reflexos das mudanças nos valores socioculturais ao longo do tempo. A mitologia, como espelho da sociedade, continua a evoluir e adaptar-se, refletindo complexidades nas interações entre culturas, poder e valores através das eras. Essa abordagem à diversidade pode ser uma razão pela qual o cristianismo, inicialmente perseguido, teve chance de prosperar. A mudança de atitude romana em relação ao cristianismo ocorreu gradualmente à medida que a religião ganhou mais seguidores. A hostilidade persistiu sob imperadores como Nero e Décio, mas Constantino, o Grande, marcou uma virada crucial ao adotar o cristianismo, tornando-o uma religião tolerada no Edito de Milão em 313 d.C.


Outro fator contribuinte para a queda do Império e a consolidação do cristianismo foi a invasão germânica nos séculos IV e V. A interação das mitologias germânicas e romanas influenciou a formação de uma narrativa mitológica híbrida. A conversão dos povos germânicos ao cristianismo, especialmente de reis como Clóvis, consolidou o cristianismo na Europa Ocidental, influenciando não apenas a esfera religiosa, mas também a estrutura política e social.


"Diante do que Paulo realizara, a multidão começou a gritar: 'Os deuses desceram até nós em forma de seres humanos!'" | Atos 14: 11, 12, 13

A influência dos povos germânicos também se manifestou na consolidação do cristianismo como uma força dominante. No período pós-invasões germânicas, a Europa Ocidental começou a testemunhar uma gradual cristianização desses povos. O papel dos missionários cristãos, como São Patrício entre os celtas e Santo Agostinho na Inglaterra, desempenhou um papel crucial nesse processo.


Os germânicos, ao adotarem o cristianismo, não apenas moldaram suas próprias tradições religiosas, mas também influenciaram a forma como a mitologia cristã foi interpretada e incorporada em suas sociedades. Essa fusão de elementos cristãos e germânicos resultou em uma rica sinergia de mitologias e tradições culturais, evidenciando como a mitologia é um fenômeno dinâmico, sujeito a evoluções e adaptações em resposta às mudanças socioculturais.


Nesse sentido, a influência romana na Igreja Católica é notável, especialmente na incorporação de santos que desempenham funções semelhantes às divindades mitológicas anteriores. Este processo destaca a capacidade da mitologia de se adaptar às mudanças culturais, mantendo uma continuidade simbólica, mesmo quando as crenças fundamentais se transformam. A mitologia cristã, assim como a romana, tornou-se uma força ativa na moldagem da sociedade, refletindo e consolidando poder através de narrativas simbólicas.


Para compreender um pouco melhor a relação entre mitologia e poder, leia o artigo "O culto da deusa Ísis entre os romanos no século II: representações nas Metamorfoses de Apuleio", de Vanessa Auxiliadora Fantacussi.


Em última análise, a propensão romana para o sincretismo emerge como um fio condutor essencial para compreender a interseção dinâmica entre mitologia e poder durante a evolução do Império Romano. A visão romana, que identificava os mesmos deuses com nomes diferentes em diversas regiões do império, refletia uma abordagem adaptativa, acomodando culturas diversas, como os helenos, germânicos, celtas e grupos semitas do Oriente Médio.


Ao examinar todos esses complexos entrelaçamentos mitológicos, desde Atena transformando-se em Minerva até a incorporação de mitos germânicos, compreendemos como a mitologia não apenas refletia, mas também moldava o poder e a identidade, como perspectiva para explorar as complexidades das interações culturais ao longo da história, não só do Império Romano e do início da Idade Média.





Referências:


Hadas, Moses (1950). A History of Greek Literature. [S.l.]: Columbia University Press. p. 273. ISBN 0-231-01767-7


"A History of the Church", Philip Hughes, Sheed & Ward, rev ed 1949, vol I chapter 6.


MacMullen, Ramsay (1989). Christianizing the Roman Empire: AD 100-400 (em inglês). [S.l.: s.n.]


MacMullen, Ramsay (1997). Christianity and Paganism in the Fourth to Eighth Centuries (em inglês). [S.l.: s.n.] ISBN 0-300-08077-8


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1 Comment


Muito esclarecedor e informativo, obrigado pelas pelo seu artigo! Júlia Alencar!

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