

Vamos começar com os fatos.
Rebeca Kuang ou R. F. Kuang, como ela assina nos livros, é chinesa. Ela nasceu na cidade de Cantão e migrou para os Estados Unidos quando tinha por volta de quatro anos. Aos vinte e dois, quando lançou o primeiro livro da trilogia, já estava a caminho de cursar um mestrado em Estudos Chineses Contemporâneos e, em seguida, viria a concluir um doutorado em Línguas e Literaturas do Leste Asiático. Os eventos do primeiro livro são fortemente baseados em eventos históricos e, ao contrário de muitas fantasias que tenho visto serem lançadas, A Guerra da Papoula (2018) não esvazia a cultura e o sofrimento chinês no qual ela é baseada para criar um espetáculo vazio para consumo do ocidente. Para mim, fica muito nítido que a primeira crítica que Kuang faz é ao gênero da fantasia, que tende a romantizar tanto o poder incrível de uma heroína, quanto a guerra -geralmente usada como uma ferramenta para estabelecer a grandeza do protagonista.
É claro que nem todo livro precisa fazer uma crítica à sociedade. Eles podem ser “só entretenimento”, mas é muito perigoso que um gênero inteiro comece a esvaziar uma coisa tão perigosa quanto a guerra. Portanto, o primeiro mérito de A Guerra da Papoula é que a obra realmente reflete sobre os horrores de uma guerra. E é aí que entra o conhecimento da autora sobre a cultura chinesa e a potência de valer-se de eventos históricos reais dentro de uma fantasia. O próprio título do livro já faz uma menção às Guerras do Ópio, como ficaram conhecidos os conflitos entre a Grã-Bretanha e a China no século XIX, cujo principal era o comércio do ópio. Enquanto a Grã-Bretanha queria expandir o mercado e vender para o Oriente, o governo chinês queria barrar a entrada dessas drogas pelo efeito que elas tinham tanto no indivíduo, quanto na sociedade como um todo. Como consequência, a Grã Bretanha invadiu a China e conseguiu vencer o poder militar chinês.
Essa sucessão de eventos agravou a instabilidade interna do país e, eventualmente, acarretou em dois conflitos armados entre a China e o Japão. A Segunda Guerra Sino-japonesa só acabou de fato quando o Japão se rendeu aos aliados após a detonação das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
E o que isso tem a ver com o livro da R.F.Kuang?
A Guerra da Papoula faz um paralelo direto com essa guerra e foca na brutalidade que foi a expansão japonesa no território chinês. No livro, Nikara representa a China, a Federação de Mugen representa o Japão enquanto Speer representa Taiwan. O primeiro livro conta a história de Rin, uma órfã dessa primeira guerra sino-japonesa ( no livro, conhecida como Guerra da Papoula), que vai pra uma academia militar e acaba vivenciando esse segundo conflito.
Em teoria, a saga é uma fantasia convencional: Rin é uma órfã com poderes especiais que está destinada a grandes feitos, com ajuda de um mentor. No entanto, o diferencial do livro é que ele não esvazia os temas que apresenta. A protagonista não é especial porque é mais rebelde ou mais bonita do que os outros personagens; ela é movida por medos e situações muito reais. Quando, por exemplo, ela passa em uma prova praticamente impossível, logo no início do livro, não é porque ela é mais inteligente, é por um instinto de sobrevivência - Rin vivia em um ambiente abusivo, com uma família que quer vendê-la para um casamento infantil.
O fato da protagonista ser uma mulher não é um detalhe pra vender empoderamento feminino, ela sofre consequências fato dela de ser do sexo feminino: ela é sujeita ao casamento infantil, tem medo do abuso, além de ter que lidar, por exemplo, com a primeira vez que ela menstrua dentro de uma academia militar, cercada cercada de homens. Os poderes que ela descobre que ela tem também não são uma peculiaridade que fazem dela uma garota especial. Dentro de um contexto militar, são uma arma de destruição em massa. Rin é muito mais uma arma biológica ou uma bomba atômica do que uma heroína.
O mais importante e que às vezes até me causa mal estar durante a leitura é que o livro reconhece que não é uma aventura épica - é uma história sobre violência. Há cenas de luta muito forte e cenas de guerra extremamente gráficas que fazem referência direta ao Massacre de Nanquim. Em um dos eventos históricos mais horripilantes da Segunda Guerra Sino-japonesa, a cidade de Nanquim na China foi atacada pelo exército japonês, que assassinou mais de duzentas mil pessoas e estuprou cerca de vinte mil mulheres, inclusive crianças.
Em A Guerra da Papoula, somos forçados a adentrar o ciclo da barbaridade junto com a protagonista. Assim como Rin, descobrimos que uma guerra não é um evento heróico e que o preço do poder, qualquer que seja ele, é sempre a violência.
Eu já havia visto a capa desse livro várias vezes, mas não tinha dado uma chance justamente pela onda genérica que tem acontecido em livros de fantasia bombados que vem de fora. Seu texto foi determinante para me fazer ter um real interesse por essa história. Acho muito incrível quando autores conseguem trazer histórias reais para mesclar com a ficção e criar uma mensagem poderosa, por mais que às vezes seja muito dolorosa (e eu espere um final feliz pra personagens que sofrem tanto, e que na metade das vezes não vem :'). Muito obrigada pelo texto e pela indicação, Julia!