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Quando a Arte se torna Literatura, e quando a Literatura se torna Arte?

ARTIGO DE OPNIÃO por Gabriel Mello






É quase que consensual entender a Literatura como Arte. Porém, desproporcionalmente, é quase um esforço entender Arte como Literatura. Diversos estudos literários se voltam justamente para pensar o objeto literário como fator estético, atribuindo a posição de Arte ao fazer da literatura. Vale ressaltar, porém, que o fazer artístico pouco se limita à estética, no entanto é inegável que a catarse por muito tempo serviu como ponte direta entre o público e o objeto artístico.


É nessa argumentação que diversos pesquisadores passam a se apropriar de ferramentas variadas, como a Teoria da Narrativa, que se vale de conceitos como narrador, foco, personagem, espaço e tempo (BORGES,2019). É intuitivo e prazeroso pensar na criação narrativa como Arte, porém é igualmente tendencioso atribuir uma via única entre essa interconexão.


Ainda dentro do entendimento mais disseminado, a leitura de textos, sejam estes ficcionais ou não, acaba por desencadear efeitos de sentido nos leitores, os permitindo a transcender muitas vezes aquele campo limitado do real. Isto chama-se catarse, como já apontado. E esta interconexão com a experiência estética/poética/artística é suficiente para elevar a prática literária ao conceito de "arte literária", que se relaciona justamente com a leitura e análise de narrativas.


Porém, não existem narrativas para além do verbal? Certamente existem, e é nesse ponto, propondo uma criação simbiótica entre Arte e Literatura, que trago a teoria da Cultura Visual como complemento à Teoria da Narrativa.


Sobretudo, falar hoje de Cultura Visual significa falar de um campo de estudos muito alargado, onde cabem não apenas os estudos de Arte, influenciados pelos estudos culturais e pelo olhar antropológico, mas toda uma série de estudos sobre arquivos de imagens e o seu cruzamento com diferentes saberes, seja da medicina, da literatura, da história, da psicologia, ou de outros (MEDEIROS,2017). Pensar em Cultura Visual, ou em Visualidades, é entender o papel que as imagens exercem no nosso comportamento e nas nossas reações.


A partir de nós, do nosso interior, referências visuais foram acopladas e passaram não só a traçar, mas também a contar narrativas. Olhar para o mundo e poder lê-lo implica em lidar com a nossa Cultura Visual. Como um fator cultural, ele se desdobrará de forma diferente, totalmente pessoal, e justificará uma posição específica do nossos contexto, nossos incentivos e nossas afinidades.


Quando Raimundo Martins diz que o papel que a arte e a imagem desempenham na cultura e nas instituições educacionais não é apenas o de refletir a realidade ou torná-la mais real, mas articular e colocar em cena uma diversidade de sentidos e significados (MARTINS, 2006), ele nos mostra que interpretar o mundo é o mesmo que significá-lo, isto é, construir uma narrativa em volta das vivências.


A Cultura Visual, como um campo aberto e expansivo, não se restringe a um único domínio. Ela permeia nossa existência, moldando a maneira como percebemos e interpretamos o mundo. Essa interconexão com a estética visual não apenas enriquece a experiência humana, mas também se revela como, também, uma forma de narrativa. Assim, ao analisar as imagens que nos cercam, percebemos que elas não apenas refletem a realidade, ou a interpretação desse real, mas também articulam uma miríade de significados e sentidos, tal como destacado por Raimundo Martins.


A Narrativa, porém, no conceito mais tradicional, é um domínio da Literatura, da mesma forma que a Estética é um domínio tradicional da Arte. Ainda assim, o conceito se relaciona totalmente à ideia de Cultura Visual, e perceber essas confluências me leva cada vez mais a crer numa ideia de Arte/Literatura. Isto é, numa prática indissociável entre o sentir e o contar. Pensar e pesquisar através dessa lente talvez seja o mesmo que internalizar o fato de que a Arte sempre foi Literatura, e que a Literatura sempre foi Arte.


Judite cortando a cabeça de Holofernes (Caravaggio, 1598-1599)

As pinturas de Caravaggio sempre contaram com a sintaxe, com personagens, temáticas e narrativas. Na mesma lógica, os romances de Victor Hugo sempre contaram com a apropriação dos próprios símbolos, e com a conversão deste em uma experiência sensível. Não só dentro dos clássicos, mas encrustado em toda manifestação cultural desde quando o Ser Humano é um ser humano. Da caverna de Lascaux às galerias de Arte Contemporânea; das cantigas trovadorescas à poesia simbolista; sempre houve um amálgama entre Arte e Literatura. O sentir sempre esteve dentro do contar; o contar sempre esteve dentro do sentir, e ambos sempre caminharam em prol do significar.


Nesse sentido, a concepção de "narrativa", que tradicionalmente pertence ao domínio da Literatura, encontra na Cultura Visual uma aliada poderosa, quase como um próprio sinônimo. A capacidade de interpretar o mundo por meio de imagens é, de fato, uma forma de contar histórias, e essa fusão de elementos narrativos visuais e literários transcende a dicotomia entre Arte e Literatura, sugerindo uma prática indissociável entre o sentir e o contar.


Esse realocamento de percepção, por mais intuitivo que possa ser, é bastante necessário e, como citei no começo deste texto, ainda parece ser um esforço, algo pouco natural. Porém, faço desta perspectiva um começo para toda uma investigação que me levará, e o levará, para caminhos inimagináveis. Tecer narrativas com a Arte/Literatura transforma-se em noções bastante interdisciplinares.


O campo da Arte/Literatura nos permite entender muito na ação humana, e muito das suas significações através da cultura. Muito mais do que isso, este campo de conhecimento permite desbravar o passado, focalizar um presente e, quem sabe, especular um futuro.


Se colocar nessa associação não só supera a unilateridade do assunto, que às vezes se esforça mais em reconhecer justificativas do que buscar os impactos dessa junção, mas também abre um caminho interdisciplinar nas humanidades, uma em que a experiência sensível da Arte pode ser aplicada às metodologias de narrativas da Literatura, e vice-versa.


Ao desbravar as interseções entre Arte e Literatura, percebo que essa jornada não apenas transcende as fronteiras acadêmicas, que às vezes parecem muito rígidas, mas também desafia preconcepções em nós arraigadas, sendo a sinergia entre Cultura Visual e Teoria da Narrativa algo que revela um terreno vasto e fecundo, onde a criação artística e literária se entrelaçam de maneiras surpreendentes.



"O Beijo Roubado", de Jean Honoré Fragonard (Imagem / Reprodução Wikimedia)


Ainda assim, por mais natural que seja, o realocamento de percepção sempre é um processo desafiador, mas essencial. A Arte sempre foi Literatura, e a Literatura sempre foi Arte. Essa compreensão se propõe a dizer o óbvio enquanto supera a unilateralidade do debate.


Diante da complexidade e da riqueza inerentes à interseção entre Arte e Literatura, percebo a urgência do empenho dedicado ao estudo e à pesquisa de uma Arte/Literatura. Nesse sentido, comprometo-me a explorar os múltiplos domínios dessa área de conhecimento, utilizando este espaço na Coluna não apenas como um veículo de expressão, mas como uma plataforma para navegar por vastos oceanos de pensamento, processos e criatividade.


Reconheço que a compreensão aprofundada dessa simbiose que chamaremos de Arte/Literatura não apenas enriquece minha perspectiva pessoal, mas também contribui para o corpo coletivo de conhecimento. Ao imergir nas nuances da Cultura Visual, da Teoria da Narrativa e das diversas outras interconexões entre essas disciplinas, almejo não apenas interpretar, mas também construir narrativas significativas, que desafiem e inspirem. Este compromisso reflete não apenas uma aspiração intelectual, mas a convicção de que a Arte/Literatura, entrelaçadas, servem como uma lente única para a compreensão profunda da condição humana, e de seu papel na tessitura do significado ao longo do tempo.

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2 Comments


Adoro perceber o poder da narrativa e de como essa é tudo o que nos cerca, em todos os âmbitos. Estou bem ansiosa para ler mais e me afundar dentro dessa coluna também!

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Leitura muito edificante e um ótimo ponto de partida pra coluna. Ansiosa pra ver mais da sua escrita por aqui!

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