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Resenha "Salmo Para Um Robô Peregrino"

por Nicolas R. Aquino



"Salmo para um robô peregrino", publicado pela editora Morro Branco, é o livro perfeito para leitores de ficção especulativa, especialmente os iniciantes no gênero de ficção científica e os amantes de cozy fantasy. Em um mundo no melhor estilo Solarpunk, somos apresentados a Dex, um monge não-binárie com sentimentos de incompletude e insatisfação, que decide se aventurar pelas terras de Panga como Monge de Chá. Elu só não contava que um robô chegasse trazendo uma questão essencial a ser respondida: de que os humanos precisam?


Antes de sermos levados à trama de Dex, logo no começo do livro somos apresentados ao passado de Panga, mais especificamente na Era das Fábricas, momento em que todos os robôs ganharam consciência e decidiram que não viveriam mais a serviço dos humanos, os levando a uma vida de autossuficiência. A partir disso, os seres autônomos abandonam as fábricas e suas funções primordiais, mudando-se para as florestas, longe da civilização. Nesse contexto, a lua que habitam, muito semelhante ao nosso planeta, passa a ser dividida: metade para uma única espécie e a outra para as restantes.

Como disse, conhecemos Dex depois, muitas gerações depois da Era das Fábricas, quando elu está em serviço como monge. Se tivesse que descrever Dex em uma única palavra, com toda certeza seria instigante. Desde o momento em que começamos a acompanhar seus pensamentos, o seu dia a dia, seus afazeres, seus hábitos e até mesmo suas crenças, somos instigados a querer saber cada vez mais sobre a sua jornada. O passado e o presente se entrelaçam enquanto a cabeça complexa de Dex traça a rota que elu deve seguir. Embora tenha passado a vida toda como um monge, e toda a sociedade a qual faz parte, à primeira vista, demonstre o que elu foi destinade a ser, Dex sentia que algo estava faltando.

Aquilo que, de início, parecia uma dúvida simples, logo se torna uma grande jornada de autodescoberta, motivada por um curioso fato: a dificuldade em ouvir o som de grilos. Nesse ponto, a motivação de Dex poderia até parecer boba, mas imagine-se vivendo em um mundo onde coisas básicas, como os sons da natureza, são desconhecidas, e tudo o que as pessoas têm são gravações antigas ou imitações de sons verdadeiros. Nesse cenário, acredito que qualquer pessoa entraria numa epifania sobre a própria existência apenas ao ouvir a melodia produzida por pequenos insetos.

Após encontrar sua motivação, Irme Dex nos leva pelas estradas de Panga em cima de uma bicivaca por pequenas cidades, a fim de ajudar as pessoas que por ali vivem. Acontece que, como Monge de Chá, elu essencialmente tem uma missão a cumprir: entregar conforto e conselhos aos visitantes que vão em busca de sua sabedoria. O trabalho de Dex é oferecer uma boa xícara de chá, ouvir o que as pessoas têm a dizer enquanto relaxam em volta de almofadas confortáveis. Embora pareça uma missão simples, desde o primeiro cliente de Dex vemos o quão complexo é se colocar no lugar do outro, e ainda apresentar uma boa solução aos seus problemas. Como leitor, em muitos momentos durante a aventura me coloquei no papel de um Monge do Chá, mesmo não gostando nem um pouco de chá, apenas para tentar ajudar os personagens que, em meio às suas breves aparições, eram ricamente desenvolvidos e criavam um clima quase que terapêutico para a narrativa.

Durante um certo tempo, nos parece que Dex está contente com o novo ofício. Vemos a evolução de suas habilidades e o reconhecimento que elu ganha em todas as cidades que visita. Mas sabemos que ainda sim existe uma pulga atrás da sua orelha. Ou melhor, um grilo atrás de sua orelha. Esse simples fato faz com que elu tome um caminho que nenhum humano sequer teve coragem: ir em direção às terras selvagens. E é nesse momento que conhecemos um baita personagem, o Chapéu de Musgo.

Embora Dex cumpra com excelência o papel de protagonista dessa história, tudo fica ainda mais reflexivo com a chegada de um robô de mais de dois metros de altura, cheio de perguntas e um humor, no mínimo, duvidoso. Esse tal robô deixa claro logo de cara que tem um nome, Chapéu de Musgo, e acredite, o motivo por trás desse nome, assim como aquele por trás do nome dos outros robôs, é muito divertido e faz parte de um dos pontos altos do livro: a construção por trás da cultura que esses seres autômatos criaram. Mas mesmo com toda a genialidade de seus softwares, os robôs, em especial o nosso robô protagonista, sentem que falta algo, e isso o motiva a seguir uma viagem de volta rumo ao mundo dos humanos. O que Chapéu de Musgo não esperava era encontrar alguém no meio do caminho com a suposta capacidade de responder suas perguntas.

Quando a jornada de Dex e de Chapéu de Musgo se encontram, elus são obrigades a seguir pelas terras selvagens, juntes, uma vez que Dex, no julgamento do robô, é capaz de responder suas muitas perguntas. E, embora Chapéu de Musgo deixe Dex com dor de cabeça constantemente, será mais fácil seguir sua jornada em um mundo desconhecido, tendo um local como um guia que talvez esteja tão perdido quanto elu.

Acompanhar a jornada de Dex e Chapéu de musgo é uma experiência cheia de reflexões, momentos bem-humorados, drama e questionamentos. Fui particularmente surpreendido em muitos momentos pelo nível de envolvimento que tive com este livro, que, embora seja curto, é extremamente rico e bem desenvolvido. O mundo de Panga é apresentado aos poucos, as viagens de Dex são de suma importância para que os leitores conheçam o lugar onde a história se passa. A forma como a autora descreve os ambientes, as pessoas e como suas vidas se entrelaçam com as tecnologias e os novos costumes criados após a saída dos robôs trazem um clima único da mistura do Solarpunk com um ambiente mágico muito característico, tornando esse livro ainda mais único.

Se você, assim como eu, não teve muito contato com livros de ficção científica, mas ama essa ambientação futurista, com robôs, inteligência artificial e outros elementos característicos deste gênero, acredito que "Salmo para um robô peregrino" seja um ótimo livro para adicionar às suas próximas leituras. E você, leitor veterano de ficção científica, que está cansado de histórias distópicas e pessimistas onde os robôs destroem o mundo, acredito que este livro otimista, com um robô muito carismático e que faz de tudo para ser amigo dos humanos, vai te conquistar tanto quanto me conquistou, tornando-se facilmente um favorito da vida.


Nota do editor: nesta resenha, utilizamos os pronomes neutros ao se referir ao protagonista para respeitar a sua identidade de gênero, apresentada e desenvolvida durante toda a trama.


Conteúdo presente na edição de AGOSTO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. Um projeto realizado com apoio da EDITORA AURORA.



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