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Reunião de Salomão

UM CONTO por DAVI VIEIRA






Salomão estava em sua sala, entediado, pois havia aprendido tudo o que estava ao seu alcance, e o título de “Homem Mais Sábio Vivo” não lhe dava mais borboletas no estômago. Salomão queria aprender algo novo, uma magia que ninguém havia escutado falar antes, mas ele não tinha ideia de qual seria.


Seu salão estava vazio e ele andou sem rumo para bem longe de seu castelo; queria encontrar novas vozes, novos rostos. Entretanto, para ele, até os jovens pareciam velhos conhecidos. Ele se trancou, foi para a caverna mais distante que encontrou e deixou o seu reino sob os cuidados de seus conselheiros. Começou a reaprender toda magia que um dia já dominou. Chamou um Jiin de uma de suas garrafas escondidas e pediu:


– Quero conhecer a história do último homem que teve contato com um deus que ele não conhecia – ele disse e o Jiin contou para ele tal história:


 

Era uma quarta-feira nada especial, não tinha futebol, apostas ou nada novo no teatro. Eu estava com 92 anos. Meus filhos criados e com suas famílias. Faltavam poucos dias para o Solstício de Inverno e eu sabia que não iria aguentar até lá… Não contei para ninguém. Era certo que eu deveria ter contado, mas sou velho e não devo satisfação a ninguém. Minha última memória funcional era da minha esposa comigo, e nem ela mais eu tenho por aqui. Em poucos dias irei encontrá-la.


Comi o último pão de um pecorino com hidromel e ouvi minha última sinfonia de longe. Deitei-me e esperei acontecer, mas nada, absolutamente nada, aconteceu. Vivi assim até os 94 anos. Conheci meus bisnetos e finalmente alegrei-me; estava pronto para novas experiências, mesmo com meu corpo debilitado de um senhor que viveu bastante e não lutou tanto pela saúde durante os tempos de ouro.


O fato aconteceu quando eu estava na casa de meu filho, a qual eu dei para ele e onde ele passou a infância. Então, seu quarto passou a ser meu. Nem hidromel e muito menos pecorino me deixavam colocar na boca, mas eu era feliz. Eu queria acreditar que viveria mais, porém eu já sabia que o tempo do meu corpo havia chegado no limite. Foi ao entardecer, na minha cadeira de balanço, comendo um mingau sem gosto, que tudo acabou. Não teve dor e não me deixou mágoas, tudo ficou calmo e escuro... meu filme havia acabado.


Lembrei-me de tudo que aconteceu na minha vida. Dos meus anos como criança; adolescente, quando encontrei minha futura esposa; os nascimentos dos meus meninos e da minha garota. Tudo até chegar nos meu dias finais. Foi uma ótima vida. Lembro que aproveitei meus últimos segundos para minha última oração:


“Aquele que habita no esconderijo do altíssimo, à sombra do onipotente, descansará, direi do senhor: Ele é meu Deus, o meu refúgio, minha fortaleza e nele confiarei, porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa. Ele te cobrirá com suas penas e debaixo das tuas asas te confiarás, a verdade será teu escudo e broquel.”


Eu estava flutuando em águas calmas. Abri calmamente meus olhos e vi uma imensidão, a qual não conseguiria descrever aqui, mas era como se todas as estrelas estivessem na mesma distância da lua. Brilhantes raios e asteroides; buracos negros dançavam pacificamente nos céus juntos aos planetas coloridos; era como se estivesse vendo um móbile em tamanho surreal.


Cerrei meus olhos por conta da luminosidade e tirei minhas mãos da água, levando-as ao meu rosto para tocá-lo. Ao encará-las me surpreendi: eu estava jovem.


 “Mas quem falava comigo?”, ouvi e olhei para cima, percebendo que uma criatura de três metros de altura me encarava. Quem era aquele ser? Ele estava vestido de mantos vermelhos, com um grande capuz e uma roupa totalmente detalhada, com cores douradas e pretas. Seu rosto me encantava. Tinha o bico de um pássaro que nunca conseguirei identificar, muito menos definir. Era uma mistura de tucano, águia e íbis. Ele se sentou ao meu lado e não proferiu uma única palavra, apenas olhava para o céu pacientemente, não querendo me apressar. Seu capuz tinha um belo símbolo de um quarto de lua crescente.


“Thoth”, as palavras pulavam da minha boca como se eu conhecesse o homem.


“Você dedicou consistentemente treze anos da sua vida a mim, achares que esquecerias de ti?”, ele respondeu.


Conversei com ele ainda deitado e com olhos cerrados, o que limitava minha visão à apenas a sombra do homem que, pouco a pouco, se tornava mais humano, um velho barbudo.


“E então eu estava certo quando novo? Vocês existem?” Eu estava calmo, quase anestesiado. Não conseguia sentir medo.


“Estava certo, sim” ele falou.


“Então errei ao trocar minha crença em ti pelo Deus cristão?”


“Claro que não!”, respondeu calmamente.


“Eu não entendo.”


“Você me chama de Thoth, outros me chamam de Zehuti, alguns preferem Três Vezes Grande e muitos outros só me chamam de Hermes. Garoto, eu sou um homem comum que me elevaram ao patamar de Deus, não é por isso que realmente sou um deles.”


“Então tem mais de um?”


“Claro, infinitos! Até hoje não consegui conhecer todos! Todo dia surgem e desaparecem, é difícil de entender”, ele fez uma pausa. “Levante, vou te levar em um passeio!”, ele me convidou e seguiu dizendo:


“Esse aqui é o local que você definiu como pós-vida. Isso é seu, apenas seu! Eu não sou o Deus final, e na verdade nem conheço ele ainda, mas quando você era jovem se devotou a aprender sobre mim e jurou que queria me conhecer, portanto aqui estou. Se tivesse pedido para conhecer Ele talvez estivesse com Ele agora, mas você me queria aqui quando jovem e fez um pedido, entregou toda a energia que precisava para isso, então te concedi me conhecer. Inclusive, não esqueci do seu outro pedido; também vou lhe fornecer”, apontou Thoth ao final.


“O que era?” eu questionava curioso enquanto flutuava sem medo pelo espaço e admirava o meu corpo juvenil novamente, sem dores e sem rugas.


“Conhecimento hoje vou lhe entregar! E depois te levarei para o fim de tudo, onde você seguirá a próxima fase da sua existência.”


“Quero ver minha esposa!” gritei bravamente.


Então, minha esposa apareceu flutuando logo à frente, vestida em vestes brancas, estas com partes metálicas douradas em seu torso e, em sua cabeça, um capacete espartano. O rosto era o mesmo de quando ela tinha trinta anos; o mesmo sorriso e o mesmo brilho nos olhos juvenis.


“Meu amor! Minha querida! Quanto tempo sonhei em te reencontrar” e então um grande abraço aconteceu, mas nada mais era dito. Eu sabia que aquela não era a minha verdadeira mulher. “Quem é você?”


“Sou como você lembra da sua mulher, muito obrigada a propósito!” dizia a jovem. “Sei que amava muito ela e fico feliz em te ajudar nisso.”


“Você se lembra dela como uma mulher sábia e, como sua mulher não está por aqui, a Deusa Athenas veio a substituir! Agora, Athenas, pode ir” e a mulher desapareceu.

“Pense em outra coisa, vamos!” dizia Thoth. “Seu pensamento tem força!”


“Eu gostaria mesmo de ver minha esposa, não vejo ela há muito tempo. Eu a prefiro a conhecimento! Me leve até ela, por favor!”


“Desculpe isso não posso fazer.”


“Eu quero vê-la! Ou me dê isso, ou me largue.”


Infelizmente, disse aquilo com convicção, e Hermes Trismegisto desapareceu, fazendo com que eu despencasse. Não sei para onde ele foi, mas provavelmente não foi para um lugar ruim, ele era um protegido do criador.


 

– O que mais? –  Salomão perguntou.


Não tenho certeza do resto, caro rei!


Salomão terminou de escutar a história, admirado com o que acabara de ouvir. O Jiin se sentava em uma rocha tendo o primeiro pedido de Salomão realizado. Ambos ficaram calados e pensativos.


– Por causa da fé do homem ele teve a vida como queria, e os deuses o recompensaram. Há muito tempo eu vejo que venho perdendo isso em mim. Como segundo pedido, Jiin, antes de você voltar para sua casa, peço que me torne um humano comum e tome conta do meu reino por dois meses. Depois, traga-me de volta ao meu castelo. No período que eu estiver longe, convide outros seres como Thoth para virem conversar comigo. Quero aprender mais.


E assim foi feito. Salomão foi arremessado quilômetros longe daquela caverna e vagou como um sem-teto.


Enquanto Salomão descobria o que era ser um homem comum e retoma a sua fé em seu Deus, os outros Deuses o encaravam. Uns o chamavam de Corajoso, outros de Burro, e muitos de Determinado. Salomão ficou anos perdido vagando. Muitas vezes quis voltar ao seu reino, porém não conseguiu. O Jiin tomou o lugar dele e não queria o devolver por nada; não cumpriu com seu dever de trazê-lo de volta em dois meses. Além disso, tentou dissipar sua sabedoria e memória, para que assim tomasse seu trono para sempre. Mas algo sempre o protegia.


– Muito de mim ele aprendeu – dizia Hermes de Atlântida.


– Tomara que volte à sua carioca e saia dessa pindaíba – dizia Tupã das Américas.


– Mereceu – dizia o Jiin, agora rei, ouvindo a conversa dos Deuses.


Salomão conheceu muitas pessoas em sua jornada: reis comuns que o esnobaram por sua falta de dinheiro; reis que queriam o contratar por ser um homem muito culto e inteligente. Até mesmo Deuses apareceram para Salomão: Vishnu veio para ajudá-lo, o Dinheiro, também conhecido como Deus do Mercado, chamou-o para agradecê-lo, e mais outros vinte dois seres mitológicos. Porém, a fé de Salomão não mudou, a fé em seu Deus só aumentou.


– Honrado –, dizia a Tecnologia.


– Honrado –, dizia a Globalização.


– Honrado –, dizia a Mão invisível do mercado.


Anos depois, Salomão três vezes honrado, conseguiu retornar para seu reino. Fez as pazes com seu Deus e em suas caminhadas escreveu mais um capítulo de um livro que no futuro seria considerado o sagrado “Eclesiastes”. Condenou o Jiin a ter sua existência trancada em uma garrafa, à qual foi arremessada ao mar.


Enfim, Salomão era novamente o rei, o mais sábio e o mais rico de todos os tempos. Todos os Deuses o admiravam mais. Um dia sua história seria contada; uns o considerarão um mito, e muitos outros uma inspiração, mas, para a gente, ele é um velho conhecido que sentiu o que muitos sentiram. Salomão foi um rei que recusou a ignorância.


E agora eu digo: A ignorância é uma benção, pare agora de ler e tenha o final feliz; ou continue e descubra o que você não gostaria de descobrir.


Salomão, três vezes honrado, perdeu parte de sua honra no fim de sua vida. Se afastou novamente de seu Deus e fez coisas que esse não aprovaria. Casou-se com milhares de mulheres diferentes; adorou muitos Deuses, especialmente o Dinheiro. Recebeu o desaprovamento de seu Deus e, como castigo, seu reino foi condenado a ser dividido após sua morte, e sua história de vida teria uma mancha difícil de ser apagada. Após sua morte, a profecia se cumpriu, mas seu legado não foi esquecido. Que os Deuses, ou o Deus, tenham piedade de sua alma. Salomão, o sábio, que se perdeu no tempo.



Conteúdo presente na edição de DEZEMBRO DE 2023 da Revista Especular. Leia este e mais conteúdos em revistaespecular.com.br. A Revista Especular é um selo do GRUPO EDITORIAL LUMINAR

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