top of page

Sonhando com areia no meu café

Matheus Maciel











Algumas obras de fantasia podem empurrar bastante as possibilidades do gênero ao limite. Aos limites, melhor dizendo. Quando trouxe, em uma edição da coluna lá atrás, o livro O último desejo, falei sobre como uma sombra pode ser lançada sobre os contos de fadas e, é claro, sobre toda a magia intrínseca à fantasia. 


O que a história “Esperando o fim do mundo”, escrita por Neil Gaiman como parte do arco “Prelúdios e Noturnos”, e parte da aclamada saga Sandman, nos ensina é que uma história sobre magia e sonhos pode ser exemplarmente horrível. Não me entenda mal, leitor, horrível é uma das qualidades positivas da história, senão, seu maior trunfo.


A título de  contextualização, estamos seguindo Morfeu em sua busca por recuperar itens especiais que contém partes generosas de seu próprio poder. A história que segue em sua busca é uma odisséia surreal e mística que merece, pelo menos, uma coluna - senão um ensaio especial na própria revista - dedicada a ela. 


As primeiras histórias de Prelúdios e Noturnos são temperadas em questão de temas, tom e narrativa. Tudo entregue de forma sensível, divertida e com profundidade que pode ser difícil de esquecer. Desde um episódio cômico e preocupantes com os próprios Caim e Abel, passando pelo solo árido do Tártaro, Morfeu recupera sua algibeira e seu capacete, refrescando sua memória sobre si, os sonhos e tudo que seu reino alcança e influi sobre. Para que seu poder seja restaurado, então, só lhe resta encontrar seu rubi, a ferramenta que pode tecer e desmanchar o próprio tecido do sonhar, sendo portanto, seu item mais importante e poderoso.


O grande problema é que o item caiu nas mãos de John Dee, conhecido no universo editorial da DC Comics por “Dr. Destino”. John Dee, aliás, referencia um hermetista e ocultista britânico que viveu durante o século XVI. A magia, que como disse, é um tema central na obra de Gaiman, encontra contornos elegantes nas palavras do autor, uma vez que a existência da magia não é discutida de forma binária e “quadrada”, mas trabalhada a ponto de ter seus contornos entre fantástico e real “borrados”, conferido vida e ecoando tanto nas páginas da História quanto nas sarjetas dos quadrinhos. 


Voltando ao John Dee de Gaiman, este se apossa do rubi de Morfeu e escapa do Asilo Arkham, uma prisão sombria recorrente no universo DC, principalmente nas histórias do herói Batman. Livre e dotado de um poder, segundo o próprio Morfeu diz ao final da história “além da compreensão humana”, Dee para em uma cafeteria "aberta 24 horas" e põe em prática, ao longo de 24 horas - aí, portanto, a ironia macabra - torturas e atividades nefastas sobre as pessoas que dão o azar de entrar na cafeteria enquanto o próprio espreita lá dentro.


Sandman, em sua essência, é uma história sobre o ato de contar histórias. O pedantismo típico que poderia advir de uma premissa como essa é descartado aqui, os sentimentos, em complexidades e matizes únicos, protagonizam nossa forma de perceber o que a obra tem a nos contar. Não em forma de pequenas lições cansativas ou duvidosas, mas em situações que mais perguntam do que respondem sobre o que eu chamaria de “condição humana”, para pegar emprestado de Hannah Arendt. Dito isso, em “Esperando o fim do mundo”, temos um estudo do que pode haver de mais incômodo guardado nas pessoas. Quando digo “incômodo”, aliás, não estou segurando aqui uma régua moral bem definida, mas me refiro àquelas coisas que ouvimos e nos conectamos de forma que o pensamento preponderante é: “Bem, eu já fiz algo parecido. Espero que ninguém esteja olhando para mim agora”.


“Eu sei a hora de parar [uma história]”, diz a garçonete do café, Bette. Ela, aspirante a escritora de sucesso, é o avatar do que me pareceu hipocrisia e mesquinharia no que tange à contar uma história. A soberba da garçonete ao olhar para todos na lanchonete como “sua matéria-prima” sofre um reflexo macabro aos olhos de Dee, que parece saber exatamente o que Bette está pensando. Ou, então, que ele esteja pensando exatamente a mesma coisa, e bem, vemos que ele não sabe a hora de parar. Com o rubi, vai fazendo as pessoas que prendeu ali, “moscas na teia” segundo ele próprio, cuspirem as próprias intimidades, umas contras as outras, em catarses extremas: violência, sexo e punição por confessar pecados, ironicamente sendo essa uma demonstração de poder de Dee para realizar seus próprios desejos, todos de uma vez.


Pelo que me recordo, este é o único capítulo em que o protagonismo é deslocado de Morfeu para outro personagem. Este movimento é efetivo, no sentido que percebemos a rachadura esquisita entre o sonhar e a realidade. Tudo no reino onírico em que Morfeu reina é fantástico e surreal, como em um sonho. Nesta história, porém, não mergulhamos no tecido dos sonhos, mas vemos, mediados pelo olhar obsessivo de John Dee, o vazio que é o sonhar e o desejar imediato das pessoas. É agonizante vê-las ser empurradas - fora de hora e espaço - de cabeça nos próprios sonhos, nos quais Dee, munido de uma intenção voyeur horripilante, viola a intimidade das pessoas em brincar com seus sonhos. Mais além, ele monta ali mesmo um pequeno culto em adoração a si, todos em concórdia por estarem inebriados no próprio prazer massacrante que é serem cem por cento de si mesmos naquele momento, sem qualquer amarra. Dee os faz realizar o sexo em grupo, enquanto fica olhando como um adolescente que vê aquilo pela primeira vez. Naquele ponto da história, é razoável imaginar que seja a primeira vez que ele vê, de fato, em sua vida.


“Esperando o fim do mundo” é uma história que contém uma riqueza de detalhes que talvez não caiba aqui. O que ficou de legado da história, para podermos ao menos resumi-la, é sobre como sonhar é um aspecto poderoso da vida, em que se concentram a vida e a morte. Mais para frente em “Prelúdios e Noturnos”, mais especificamente na história “O som de suas asas”, Morfeu se vê sem propósito ao fim de sua jornada. Sua irmã, Morte, o consolar mostra o sonhar e o viver - ironicamente, afinal, Morte, não é? - como parte constituinte e alegre do processo caótico e misterioso da vida em si. Em “Esperando o fim do mundo”, portanto, vimos que, para além da morte, o sonhar, como parte desse todo, é aberto também para uma destruição íntima, porém poderosa, guiada centralmente por nossos desejos e pelo prazer que gostaríamos - sonhamos - obter da vida.


Às vezes, todo ele de uma vez.

32 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page